29/10/2010 - 10:00
ATRASO
Reid lamenta que questões religiosas tenham influenciado
as eleições no primeiro turno
O vitorioso neste domingo 31 terá a enorme responsabilidade de administrar o legado de oito anos do governo Lula. O que significa, na opinião do jornalista inglês Michael Reid, realizar o desafio de elevar o Brasil ao patamar das grandes potências, além de manter o crescimento econômico e a influência política no cenário internacional. Editor para as Américas da revista “The Economist”, da qual foi correspondente em São Paulo por 15 anos, Reid afirma, nesta entrevista à ISTOÉ, que o Brasil hoje é “uma grande locomotiva da economia mundial”. Autor do livro “O Continente Esquecido: A Batalha pela Alma da América Latina”, Reid diz que o sucessor de Lula terá de agir com pragmatismo e rigor, evitando batalhas ideológicas. Sobre a nova composição partidária no Congresso, Reid prevê que a petista Dilma Rousseff, respaldada pela ampla maioria da base aliada, não teria problemas de governabilidade, o que seria muito diferente com o tucano José Serra. Reid não tem dúvida sobre o resultado do segundo turno: “É uma nova eleição, mas Dilma será a nova presidente”.
"O PT não concentra mais sua força apenas nas áreas industrializadas.
O partido mudou e cresceu”
“Se Dilma vencer, a relação com o Congresso será muito mais fácil.
Já José Serra teria grande dificuldade para governar"
O Brasil vai eleger o primeiro presidente da era pós-Lula. O que isso significa?
Se Dilma vencer, espera-se que Lula continue interferindo de alguma maneira. Lula não é Getúlio Vargas, que passou o governo Dutra em sua fazenda na fronteira com o Uruguai sem dar um pio por três anos. Ou seja, se o PT continuar no poder, é difícil falar de uma era pós-Lula.
Mas, se o candidato Serra ganhar, será o fim do lulismo?
Não acredito no fim do que chamam “lulismo”. Uma derrota de Dilma poderia significar, sim, o fim de sua carreira política, ou pelo menos de suas pretensões em se tornar presidente. Mas não de Lula. Ao contrário, a vitória de Serra reforçaria o movimento dentro do PT para tentar retomar o poder em 2014. E aí o Lula, sem dúvida, seria o mais forte candidato petista para esse desafio.
De qualquer forma, caberá ao próximo presidente administrar esse legado. Qual o tamanho dessa responsabilidade?
Muito grande. É por isso que tanta gente fora do Brasil vem acompanhando com o máximo interesse estas eleições. Não houve um veículo importante da imprensa internacional que não tenha publicado reportagens sobre essa disputa. Nada mais natural. O Brasil tornou-se uma grande locomotiva da economia mundial. É visto como o país mais poderoso da América Latina e precisará, a partir de 2011, exercitar essa influência com mais rigor.
De que maneira?
No sentido de garantir maior estabilidade democrática. Quando se analisa a realidade geopolítica da América Latina, há um reconhecimento de que a Colômbia, por exemplo, é uma potência emergente, enquanto a Venezuela é uma potência em declínio. O Brasil, como líder, deve abandonar resquícios ideológicos e ter força para condenar violações e excessos, e preveni-los também, através das instituições democráticas regionais.
Nesse sentido, o que se pode esperar do sucessor de Lula?
Num cenário de aumento da presença do Brasil na cena internacional, é preciso considerar que o País elevou sua influência também por conta de seu crescimento econômico e também porque a democracia brasileira tem sido bem-sucedida, especialmente em suas políticas sociais. Independentemente de quem seja o próximo presidente, ele terá que seguir o mesmo caminho de Lula. Não terá o mesmo protagonismo, até porque não tem o mesmo carisma nem a mesma biografia. Acho que será menos ativo, com uma diplomacia mais institucionalizada, ou seja, com o aumento do papel do próprio Itamaraty.
Além do papel regional, o Brasil deve seguir apostando na mediação do conflito no Oriente Médio ou da questão nuclear do Irã?
Já é consenso de que a aposta na mediação da crise nuclear do Irã foi o grande erro da diplomacia brasileira e fez o País perder certo prestígio. Não há dúvida de que Lula tinha suas razões e agiu motivado por um desejo sincero de ajudar, pela crença de poder ser o mediador entre, digamos, o bem e o mal, Deus e o diabo. Não acho que o futuro presidente poderá fazer isso. E o Brasil, antes de tudo, deve se perguntar se é bem-vindo em crises como a do Oriente Médio. Sinceramente, acho que não.
Então, qual deve ser o foco do próximo presidente em termos de ação internacional?
Creio que a questão iraniana não ajudou muito, por exemplo, a luta pela reforma do Conselho de Segurança da ONU. Minou as intenções brasileiras, na medida em que o Brasil contrariou as grandes potências, a Europa e os Estados Unidos. O que quero dizer com isso? Que a grande questão é que tipo de relação o País quer ter com o Estados Unidos, que ainda será a potência dominante. O Brasil é uma potência emergente e pode ajudar muito no equilíbrio de forças no tabuleiro internacional. Brasil e EUA têm muito em comum, são duas grandes democracias, duas forças dominantes na América e compartilham um grande mercado.
O sr. escreveu na “The Economist” um artigo em que considerava como certa a vitória de Dilma no primeiro turno. O que deu errado?
Na verdade, escrevi que poderíamos ter um segundo turno e que seria difícil ela perder. Embora as pesquisas de opinião tenham mostrado um crescimento da candidatura Serra, Dilma se firmou e é a favorita. Certamente, será a nova presidente. Trata-se de uma nova eleição, claro, muito mais competitiva.
Não lhe parece uma contradição que no Brasil do século XXI o debate religioso tenha influenciado o resultado do primeiro turno?
Sem dúvida! E é lamentável que algo assim possa ter influído na eleição. Isso mostra que o Brasil é um país aparentemente muito liberal, mas também muito religioso. Não está sozinho. Na América Latina, de forma geral, temas como o aborto ainda são tratados como tabu. O único lugar em que o aborto foi legalizado é a Cidade do México. Falta ao Brasil e a seus vizinhos realizarem um debate maduro sobre essa questão.
É um problema estrutural ou um reflexo do fundamentalismo religioso visto nos Estados Unidos e em vários países europeus?
Na Europa não temos mais esse problema, só mesmo a questão dos muçulmanos. Mas nos EUA esse conservadorismo ainda é forte e explorado politicamente com as chamadas guerras culturais, que marcaram especialmente o governo Bush. Espero que não progridam no resto do continente e em países como o Brasil. A politização dos temas religiosos é nociva. É preciso discutir temas mais importantes, como política econômica e educação.
Dilma é vista fora do Brasil como desenvolvimentista?
Ela segue o modelo implementado por Lula. Acredito que o Brasil segue um capitalismo mais ao estilo francês do que ao chinês, no qual o Estado apoia a criação de grandes empresas privadas nacionais, além de investir diretamente em estatais fortes, como Eletrobrás e a própria Petrobras. Acho que existem duas Dilmas. Uma é a administradora competente e extremamente pragmática, e outra é mais ideológica, mais nacionalista, mas nacional-desenvolvimentista. Esta segunda Dilma expressa o regime do pré-sal. Acho que vamos ver as duas dependendo do tema e das circunstâncias.
Considerando essa participação maior do Estado, em que áreas estratégicas ele deve atuar? Qual o limite dessa atuação?
Quando estive com Lula há dois meses, perguntei que lição ele havia tirado da crise financeira de 2008. Lula me disse que “o Estado deve estar preparado para atuar, deve regular e mobilizar capital privado e intervir temporariamente”. Espero que o Brasil siga isso. Porque o grande perigo é o abuso disso, o uso de dinheiro público para questões que não educação, infraestrutura e outras demandas da sociedade. Acredito que a chave para o investimento público é fomentar a inovação.
Na nova configuração de forças partidárias que emergiram das urnas, o que lhe chama a atenção?
O fortalecimento do PT, sem dúvida. O partido já não é mais aquele das décadas de 80 e 90, com força nas zonas mais industrializadas, especialmente em São Paulo e na região Sul. O PT tem mudado e crescido, como consequência natural dos oito anos de Lula no poder, agora com sua força crescente nas áreas mais pobres do País, no Nordeste e no Norte. É um PT mais vinculado ao Estado, ao governo. Mas acho que, com Dilma eleita, ela não governará seguindo apenas o interesse de seu partido.
Mas a ala mais radical do PT tende a impor sua agenda com mais força agora?
É muito difícil responder a essa pergunta. Dilma desenvolveu sua carreira nos bastidores do poder, então não dá para prever como lidará com esses assédios. O Lula, com seu jogo de cintura e sua intuição política extraordinária, restringiu a atuação dos radicais. Até onde sabemos, a Dilma terá que levar em conta não só a força das correntes do PT, mas os interesses de todos os aliados, especialmente do PMDB. Os governos sempre têm que responder às circunstâncias. Então, até que ponto ela terá dificuldade com isso não dá para saber, é uma pergunta aberta.
De que forma a composição do Congresso interfere na governabilidade do próximo presidente?
Depende de quem for o presidente. Com Dilma, o processo de negociação com o Congresso será muito mais fácil. Na hipótese de Serra, ele teria grande dificuldade para governar.
Então só com um governo Dilma sairão as ansiadas reformas política e tributária?
Não sei se interessam ao PT essas reformas. Acho que interessam muito ao País, mas a questão de fundo será saber o que acontecerá no mundo. Os economistas do PT acreditam que o Brasil tem tempo para fazer ajustes suaves do déficit fiscal, reduzindo de forma muito lenta o nível de investimento do BNDES. A concepção de pessoas como Luciano Coutinho é de que o Brasil tem tempo para reduzir o déficit fiscal e o nível de endividamento do BNDES, tempo para desenvolver formas mais sólidas de financiamento a longo prazo. Isso não será um problema se a economia mundial permanecer no nível atual. A sorte é que atualmente não há nenhuma crise imediata para resolver.