Como nos velhos tempos da União Soviética, algumas questões sobre o massacre da escola de Beslan – que há dez dias provocou a morte de cerca de 370 pessoas (entre elas mais de 150 crianças) e ferimento em mais 700 – talvez nunca sejam esclarecidas. Por exemplo, por que foi divulgado um número muito inferior de reféns, 300, quando na verdade eram 1.181? Por que os soldados russos receberam a ordem de invadir a escola de qualquer maneira, como leva a crer uma fita de vigilância gravada pelas forças especiais? Respostas que, pelo menos aos parentes das vítimas, o governo teria a obrigação de fornecer.

O presidente russo, Vladimir Putin, ex-chefe do KGB, recusou-se a abrir um inquérito público, essencial para explicar não apenas aos russos, mas ao mundo, o que realmente levou ao trágico desfecho do cerco de três dias na pequena cidade da Ossétia do Norte, no sudoeste do país. Logo depois da tragédia, Putin declarou tratar-se de uma ação do “terrorismo internacional”, vinculado aos fanáticos islâmicos internacionais, entre eles o abominável Osama Bin Laden. Especialistas em contraterrorismo na Chechênia já tinham identificado relações entre os fundamentalistas muçulmanos e os rebeldes chechenos. Mas depoimentos de algumas crianças sobreviventes revelam que os terroristas que falavam aos celulares tinham sotaque checheno e ingushétio, não árabe. O Kremlin afirmou que havia nove terroristas árabes, mas os corpos desses estrangeiros – que supostamente estariam mortos – não foram identificados.

Associar ações terroristas à Al-Qaeda foi a solução encontrada por Putin para igualar o 3 de setembro de 2004 ao 11 de setembro de 2001. Assim, o Kremlin segue os passos da Casa Branca para adotar as chamadas “medidas preventivas”, ou seja, atacar antes de ser novamente atacado. E, como Washington atacou um alvo duvidoso, o Iraque, Moscou poderia enviar tropas para a república da Geórgia, país acusado de abrigar os separatistas. Como Bush, Putin também promete caçar os terroristas em qualquer rincão da Terra. Pior, os russos, mais do que os americanos nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, estão dispostos a abusar de métodos “heterodoxos” para perseguir os chechenos. No dia seguinte ao massacre, supostos parentes de terroristas, entre eles crianças, foram detidos e torturados na Rússia.

Mas o Ocidente faz ouvidos de mercador. “A Carta da ONU dá direito à autodefesa e a própria ONU aceitou que uma ameaça iminente ou provável do terror autoriza qualquer país a tomar ações apropriadas”, afirmou o chanceler britânico Jack Straw. Já o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, ponderou: “Temos que encontrar meios de combater com eficácia o terrorismo, mas também nos assegurar de que esses meios não minem o império da lei e dos direitos civis.”

Há muitas razões para o Ocidente não enfrentar o urso. A Rússia é o maior produtor de combustíveis do mundo (petróleo e gás), possui um considerável arsenal nuclear e ainda goza do direito a veto no Conselho de Segurança da ONU. O dirigente russo afasta qualquer possibilidade de uma intervenção internacional e ainda ralha com quem questiona o fato de ele não aceitar negociações com os moderados separatistas, como Aslan Maskhadov. “Vocês convidariam Osama Bin Laden à Casa Branca ou a Bruxelas para conversar com ele e o deixariam ditar o que ele deseja?”, indagou irritadíssimo o presidente a jornalistas britânicos. Seu argumento é que “ofereceu” eleições aos chechenos. Mas o presidente russo esqueceu-se de dizer que houve denúncias de fraudes.

Qual o preço que Putin estará disposto a pagar pelo uso da força bruta no Cáucaso? Desde 1999, quando ele começou a repressão na Chechênia, 50 mil chechenos e 15 mil soldados russos já morreram. Na Espanha, logo após os atentados de Madri em 11 de março, o então primeiro-ministro José María Aznar perdeu as eleições para o socialista José Luis Zapatero justamente por tentar manipular a opinião pública. Ponderadas as proporções, a Espanha não é a Rússia, onde a mídia oficialesca abafa qualquer tentativa de questionamento de ações governamentais. Existem suspeitas de que Anna Politkovskaya, jornalista especialista em Chechênia da Novaya Gazeta, tenha sido envenenada. Três outros repórteres que cobriram o cerco de Beslan foram presos. E a televisão estatal NTV ajudou a convocar uma gigantesca manifestação contra o terrorismo em Moscou. Cerca de 100 mil pessoas foram à Praça Vermelha, onde o slogan era “o inimigo será esmagado”, numa clara demonstração do apoio ao governo.

Por tudo isso, fica mais difícil para Putin separar o joio do trigo e isolar os separatistas, como Maskhadov, dos radicais, como o líder terrorista Shamil Basayev. Moscou oferece US$ 10 milhões por Basayev e Maskhadov, acusados do massacre. Já os terroristas ofereceram US$ 20 milhões por Putin, a quem acusam de “criminoso de guerra”. A sorte está lançada.