Em tratamento contra um tumor de ovário, a atriz diz que, sem querer, muita gente culpa o paciente pela doença e atribui a ele a responsabilidade pela cura

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VAIDADE
Márcia não descuida da aparência. Está usando peruca
e retoca cílios e sobrancelhas com maquiagem

 

A atriz e comediante Márcia Cabrita, 47 anos, recebeu o diagnóstico de tumor de ovário em março. Agora, ela acredita ter aprendido muita coisa nestes últimos sete meses a respeito de como se sente, de verdade, um paciente com câncer. Descobriu, entre outras coisas, que, mesmo sem querer, muita gente acaba jogando sobre os ombros do doente culpa e cobrança ao dizer, por exemplo, que a origem da doença está em uma mágoa não superada ou que é preciso manter o pensamento positivo sempre. “Atribuir ao esforço e à motivação interna do doente a capacidade de cura também é uma crueldade”, disse nesta entrevista à ISTOÉ. Sem falar do “olhar pé na cova”, como ela se refere às pessoas que falam “que bom te ver!”, mas cujo olhar não disfarça a surpresa por ela “ainda” estar viva, e bem.
 

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"Um conselho a quem está doente é: não ‘consulte’ a internet.
Informe-se sempre com os médicos"

 

Márcia retirou os ovários e o útero, a quimioterapia está dando certo e seu prognóstico é de cura. De sua casa, no Rio de Janeiro, ela compartilha a experiência no blog Força na Peruca e se anima com as mensagens dos internautas. Quando a quimioterapia não a deixa debilitada demais, sobe ao palco para encenar a comédia “Tango, Bolero e Cha Cha Cha”, em cartaz no Teatro Clara Nunes, no Rio. Separada, é mãe de Manuela, 9 anos.

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"Todos dizem que o importante é viver, que o cabelo é o de menos.
Mas a gente sofre por perder os cabelos, sim.
Não é legal ficar careca, caramba"

 
ISTOÉ

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O que você sentiu quando soube que estava com câncer?

Márcia Cabrita

Quando eu acordei da cirurgia em que retiraram o útero e o ovário, nem sei o que senti. O médico me disse que tinha encontrado uma coisa que não esperava. Eu perguntei: “É câncer?” Ele respondeu que tínhamos de aguardar o resultado da biópsia. Depois, tive medo de morrer. Muito. Só pensava em minha filha. Em deixar órfã a pessoa que mais amo.

ISTOÉ

Conseguiu manter a calma?

Márcia Cabrita

Não, e penso que ninguém precisa manter a calma numa hora dessas. Mas fiz tudo o que tinha de fazer, tomei todas as providências: exames, consultas, cirurgias.

ISTOÉ

No seu blog, você fala da cobrança que sentiu das pessoas a sua volta. Que tipo de cobrança foi essa?

Márcia Cabrita

Todos os amigos e familiares acabam cobrando muito: que você tenha pensamento positivo, seja otimista e forte. Mas, naquele momento, eu não conseguia isso. Eu só tinha pensamento negativo, era o inverso. Comecei a achar que não poderia ficar boa porque não era capaz de ter pensamentos bons. Só os otimistas conseguiriam e eu, então, estava fora dessa possibilidade.


ISTOÉ

O que mais a aborrecia?

Márcia Cabrita

Uma crueldade é a busca de todos por um culpado para o fato de o câncer ter aparecido. No caso, era eu. É muito cruel insinuar que a pessoa é que “faz” o câncer porque ela era triste, porque se divorciou, porque comeu agrotóxico. Ninguém “faz” um câncer. Eu não tinha feito aquilo em mim, como poderiam me culpar?

ISTOÉ

Você deve ter ouvido também que o doente é responsável por sua cura.

Márcia Cabrita

Isso. E esta é a segunda parte da crueldade. Você seria totalmente responsável pela sua recuperação. Se tiver uma cabeça boa, fica curada. Se não, não. Isso equivale a colocar a responsabilidade da doença em quem está doente. Discordo. Não tenho responsabilidade nenhuma. O que aconteceu comigo pode acontecer com qualquer pessoa. Seja ela feliz, triste, criança, velha, ator, otimista ou não.

ISTOÉ

Antes de ficar doente, você já tinha falado essas mesmas coisas para outras pessoas?

Márcia Cabrita

Sim. Quando passei para “o outro lado”, vi pessoas fazendo coisas comigo que eu já fiz. Por isso, não duvido das boas intenções. É que ninguém sabe bem como lidar com a situação. Então, mesmo que eu fique magoada, eu compreendo.


ISTOÉ

Que conselhos daria a quem está em tratamento contra o câncer?

Márcia Cabrita

Um conselho que posso dar é: não “consulte” a internet. Não há nada pior para um leigo. Informe-se sempre com os médicos. Segundo: um dia de cada vez, faça o que precisa ser feito agora. Terceiro: dê a si espaço para desabafar o que está sentindo – chorar, chutar, quebrar. Por fim, tente ignorar os “olhares pé na cova”.

ISTOÉ

Como é esse olhar?

Márcia Cabrita

É terrível. Tem gente que fala: “Que bom que estou te vendo!” Mas, pelo tal olhar, eu ouço: “Nossa, você não morreu!” Há outros que te olham com cara de surpresa mesmo, como se olha para alguém indiscutivelmente com o pé na cova. A expressão diz: “Você está viva?!” E tem uma irônica parte boa do câncer: todo mundo passa a te amar, a gostar de você.

ISTOÉ

Você consegue fazer humor com o assunto, não é?

Márcia Cabrita

É da minha personalidade. Mas não estou subvalorizando a doença. Porque o inverso do “olhar pé na cova” é a pessoa que tenta passar que não acha nada demais ter câncer. Não é legal. Você está se sentindo podre e a pessoa acha que ajuda dizendo que você está maravilhosa.

ISTOÉ

Como você contou para a sua filha que estava doente?

Márcia Cabrita

Achei que devia explicar por que eu ia ficar careca. Não falei que era câncer, falei só que estava doente. Mas, depois, passei a noite pensando por que não tinha falado a palavra. Vi que estava estigmatizando. No dia seguinte, disse toda a verdade. Mas suavizei: “Câncer, igual ao signo de seu pai.” Ela respondeu: “Então, tá.”

ISTOÉ

E como ela lida com isso?

Márcia Cabrita

Ela não fala muito. Mas encontrou uma maneira de me dar força que me emocionou demais. Depois que raspei a cabeça, comecei a usar lenços. Um dia ela disse: “Mamãe, eu queria usar um lenço igual ao seu.” Perguntei por quê. Ela disse: “Porque é muito legal.” E, nesse dia, foi de lenço para a escola. Chorei muito.

ISTOÉ

Em que fase do tratamento você está?

Márcia Cabrita

Faço dois tipos de quimioterapia. Uma, toda semana, não provoca reações, me sinto bem. A outra me deixa péssima, faço de 21 em 21 dias. Essa me leva a nocaute. Fico quase uma semana de cama. O câncer traz sofrimento. Emocional e físico por causa da químio. Tenho dois cateteres (colocados sob a pele para injetar os medicamentos quimioterápicos). Farei mais dois meses de tratamento. Mas estou em remissão. Para quem não sabe, é quando você não tem mais o câncer, mas não pode, ainda, sair correndo e dizer que está curada.

ISTOÉ

Está mais tranquila, então?

Márcia Cabrita

Desde que a quimioterapia começou a dar certo, o pessimismo passou. Os médicos são muito importantes nesse momento. Tanto o cirurgião, Celso Portella, quanto o oncologista, Eduardo Bandeira de Melo, me ajudaram a acreditar na cura. Hoje me sinto bem mais fortalecida, apesar de passar muito mal na quimioterapia. Somente agora sou capaz de sentir o que me cobraram no início.

ISTOÉ

Por que quis fazer o blog?

Márcia Cabrita

No começo, para colocar para fora o que eu estava sentindo. E isso me fez um bem enorme. Depois, percebi que estava também ajudando os outros. Escrevem para mim pessoas doentes e as que não têm câncer. São pessoas que, como eu, não gostam, por exemplo, de ler que “fulano perdeu a batalha contra o câncer”.

ISTOÉ

O que a incomoda nessa frase?

Márcia Cabrita

Isso dá a entender que a pessoa não lutou o suficiente. E não acredito que quem sobrevive é especial, que a pessoa “venceu” porque tinha alegria de viver, tinha amor pelos filhos. Quem morreu não tinha isso? Me incomoda demais responsabilizar o doente desse jeito.

ISTOÉ

Você assumiu a doença desde o início?

Márcia Cabrita

Pensei em esconder, não tornar público para me proteger. É um momento muito sofrido e particular. Muita gente opta por não contar, e eu entendo. Mas eu estava para estrear a peça “Tango, Bolero e Cha Cha Cha”. A princípio, combinamos não dizer o verdadeiro motivo pelo qual eu não estaria na estreia. Mas aquilo me fez muito mal: além de tudo, ainda tinha que me esconder como se tivesse feito alguma coisa errada? Não menti, mas não dei nenhuma entrevista sobre isso. Pensei muito antes de marcar essa entrevista que estou dando agora porque, para virar uma coitadinha, não custa nada. E não quero este papel. Gostaria de continuar sendo o que eu sou. Não a atriz que teve câncer.

ISTOÉ

E como está trabalhando?

Márcia Cabrita

Faço o espetáculo quando estou me sentindo bem. Quando me sinto mal, há uma atriz (Carolina Loback) que me substitui. É curioso estar no palco fazendo uma comédia. Eu penso comigo mesma: não acredito que estou com câncer e fazendo essa macacada toda no palco.

ISTOÉ

O fato de ter tido câncer num órgão feminino afetou você de alguma maneira?

Márcia Cabrita

Achei que não ter mais ovário e útero poderia mexer comigo mas, sinceramente, me sinto igual a antes. Não tinha mais projeto de ter filho, então, não afetou.

ISTOÉ

E perder os cabelos? Isso mexeu com você?

Márcia Cabrita

Não foi nada fácil. E nesta questão há outra cobrança cruel: todos ficam falando que o importante é viver, que o cabelo é o de menos. Não é bem assim. Claro que, ao se descobrir com câncer, o que importa é viver. Mas a gente sofre sim por perder os cabelos. Não é legal ficar careca, caramba. Depois, você se acostuma, supera mesmo. Eu superei isso. Mas na hora é difícil. Ver aquele cabeção careca é horrível. E ainda tinha isso: sentir culpa porque estava sofrendo por uma coisa que não tinha valor, já que o que importa é a vida.

ISTOÉ

Agora você cuida da aparência sem culpas?

Márcia Cabrita

Eu tenho câncer, mas continuo sendo eu. Não quero sair na rua com cara de bruxa. Meus cílios caíram e a sobrancelha também caiu um pouco. Eu pinto, completo com lápis marrom. Atualmente, uso uma prótese de cabelo, parece peruca. Uma noite, no teatro, aconteceu uma coisa incrível. O cabeleireiro do teatro a alisou e, quando olhei no espelho, voltei a me ver, entende? A cura se materializou, eu fiquei igual a mim, como eu era. Recuperei minha imagem. Como fiquei feliz!

ISTOÉ

Após o tratamento, acha que dará mais valor às coisas simples, será mais generosa, vai mudar?

Márcia Cabrita

Acho que não. A única coisa que vai mudar é que lidarei melhor com isso se alguém, um dia, precisar de mim. Mas não serei diferente. Pretendo voltar a ficar chateada com meu cabelo se ele não estiver legal, com a unha quebrada, com a calça apertada. Quero que os motivos fúteis voltem. Quero ter, de novo, o direito de me irritar por futilidade.


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