Talvez ninguém perceba que a orelha do ator Rafael Raposo, que interpreta Noel Rosa no filme Poeta da Vila, fica levemente dobrada para fora da cartola usada num baile de carnaval de 1931. Isso é apenas um detalhe – revelador, porém, do olhar agudo do diretor Ricardo van Steen, que, delicadamente, chegou a “consertar” a orelha do ator enquanto passava orientações no set, armado no centro histórico do Rio de Janeiro. Artista plástico e publicitário, Van Steen é um profissional acostumado a perseguir seu ideal. Sob seu comando, 30 atores, além de figurantes e equipe técnica, se esmeram para contar a história do cantor e compositor nascido em Vila Isabel, zona norte do Rio. Embora tenha vivido pouco – morreu vítima de tuberculose aos 26 anos, em maio de 1937 –, o poeta deixou cerca de 360 composições, entre elas clássicos como Palpite infeliz, Com que roupa, O orvalho vem caindo, Fita amarela e Pastorinhas. Com produção da Movi&Art, o longa-metragem, previsto para estrear no segundo semestre de 2005, se inspira no livro Noel Rosa – uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier.

As filmagens começaram em agosto. “Encontramos construções fantásticas daqueles anos, mas dá dó porque estão mal conservadas”, lamenta o diretor. Com a ajuda de uma boa pesquisa, todas as locações estão sendo recriadas cenograficamente. A rota da malandragem, que vista de hoje se mostra apenas uma subversão romântica da vida, alinha cabarés, rádios, bilhares e botequins. Um imaginário que fascina Van Steen há pelo menos uma década, quando decidiu realizar Poeta da Vila. Desde essa época, ele começou a pagar direitos autorais para a família, gravadoras, editores das músicas, intérpretes e biógrafos. Em relação aos últimos, não tem jurado estrita fidelidade. “No roteiro final, me permiti introduzir coisas da minha cabeça”, conta ele, que assina o texto com Pedro Vicente Alves Pinto. O enfoque oscila entre o artista inquieto e extremamente criativo e o tripé que o sustenta – “a família, o mercado e as mulheres”, explica Van Steen. Segundo ele, Noel lidava com essas três “entidades” de maneira totalmente transgressora. “Não aceitava as regras, queria reinventá-las.” De alguma forma, acabou conseguindo.

“Passei a fumar” – Certamente, vai causar impacto a incrível semelhança do ator Rafael Raposo com Noel Rosa. Carioca de Jacarepaguá, 25 anos, ele vem se preparando há meses em aulas de canto e dança. A clonagem se completa com a escova progressiva nos cabelos ondulados, com uma prótese de silicone na boca para torcer a mandíbula e com a eficiente maquiagem de Uirandê Holanda, que afunda as bochechas e acentua o olhar. O ator já perdeu oito quilos e vai emagrecer mais para as cenas em que a tuberculose se agrava. “Parei de viver a minha vida para viver a dele. Passei a fumar, o que não fazia antes”, diz Raposo. Para compor seu personagem, ele puxou da memória as lembranças do primeiro protagonista que fez no teatro. “Fui o Patinho Feio, na peça de Maria Clara Machado. Há similaridade: ambos são feios e têm de vencer buscando outros caminhos. No fundo, eu sempre fui Noel. Nunca tive grana, nasci no subúrbio, sempre fui um adolescente meio velho.” A escalação de Raposo e a pesquisa do elenco respondem pela parte “mais requintada” do trabalho, segundo Van Steen, tarefa a cargo de Dani Pereira e Rosa Fernandes: “Praticamente todos os atores são sósias dos originais.”

O ambiente de filmagem, com reluzentes Chevrolet ano 1932 ou Fordor 1929, de fato, dá a impressão de um túnel do tempo. Envergados em roupas de época, cruzam-se figuras mitológicas como Chico Alves (Cristiano Gualda), Cartola (Jonathan Haagensen), Aracy de Almeida (Carol Bezerra) e Mário Lago (Supla). Noel aparece vestido de mulher, fantasiado para o Carnaval. A atriz Camila Pitanga vive Ceci, dançarina e amante do sambista. “Ricardo me convidou para esse projeto há seis anos. No início, era para eu ser a Linda, mulher do Noel. Com muito custo, consegui convencê-lo a me deixar ser a Ceci. Eu queria muito fazer essa mulher da pá virada”, diz. A flexibilidade é uma característica de Van Steen, que se despe do título de “um dos melhores publicitários de sua geração” para encarar o cinema na pele de um estreante. “Não vou para o ultrapop de tevê nem para o filme de autor-cabeça. Vou tentar ficar no meio.”