O escritor americano Jack London (1876-1916) provocou espanto em seus contemporâneos ao decidir mergulhar, em pleno início do século 20, no East End de Londres, região onde se amontoavam os excluídos da capital do império britânico. Naquele verão de 1902, comentava-se que a vida de um homem não valia um vintém ao Leste da cidade, para onde eram empurradas legiões cada vez maiores de desempregados produzidos pela revolução industrial. No final da temporada, London deixou o East End com uma reportagem social sobre um tema perturbador que, se desapareceu das preocupações dos fleumáticos londrinos, continua presente no universo paulistano, como mostram os recentes assassinatos ocorridos no centro de São Paulo. Cem anos depois da primeira publicação, nos Estados Unidos, a recém-lançada edição de O povo do abismo (Editora Fundação Perseu Abramo, 334 págs., R$ 38) continua provocando forte impacto ao dissecar bolsões de miséria encravados em meio à opulência.

Nascido numa família pobre de São Francisco, London já era um escritor abastado e famoso quando, passando-se por um marinheiro americano desempregado, começou a circular pelo submundo londrino. Embora tivesse enfrentado incontáveis dificuldades desde criança, saiu impressionado da primeira incursão pelo East End. “Num mercado, velhos e velhas trêmulos procuravam restos de verdura, feijão e batatas podres em meio ao lixo lançado na lama, enquanto crianças, como moscas que rodeiam um monturo de frutas apodrecidas, mergulhavam os braços até a altura dos ombros num líquido putrefato de onde retiravam nacos deteriorados, que eram devorados ali mesmo”, contou. Mesmo assim, não desistiu da empreitada. Em uma loja de roupas usadas, comprou trajes surrados similares aos de seus companheiros de infortúnio. Em seguida, providenciou um abrigo seguro. Para os padrões americanos, era um quartinho miserável. Para o East End, que abrigava cerca de 450 mil excluídos, era o supra-sumo do luxo.

À época, Londres contabilizava 35 mil moradores de rua. Eram pessoas que passavam o dia recostadas em bancos e calçadas, depois de atravessar a noite arrastando-se de um lado para o outro, entre sonâmbulas e marejadas de sono. O próprio escritor demorou para descobrir o motivo dessa contradição. É que, no coração do império britânico, havia uma lei proibindo os sem-teto de dormir à noite pelas ruas. Por mais que se escondessem, sempre aparecia um guarda empenhado em acordá-los. Existia também um círculo vicioso que levava esses sem-teto do sono e da fome para a fraqueza e, dela, novamente para o sono e a fome. Para descansar, eles tinham como alternativa os albergues noturnos. Esses, por sua vez, exigiam, em troca de teto, a prestação de serviços pesados, como quebrar pedras. Uma missão quase impossível para homens e mulheres famintos. Mergulhar nas descrições de London tendo em mente a cruel aventura dos sem-teto hoje, nas grandes cidades brasileiras, leva à conclusão de que a humanidade deu várias nuances à vida das elites no decorrer dos tempos. Mas as tonalidades da miséria sempre foram e ainda continuam sombrias como as das trevas.