Duas vezes por ano, um frasco de cristal e prata contendo o sangue coagulado de San Genaro é tirado de um cofre na igreja que leva o seu nome, em Nápoles (Itália), e é mostrado aos fiéis. Diante dos olhos dos peregrinos, o milagre acontece: o plasma sai do estado sólido e se liquefaz. Os rituais ocorrem sempre no primeiro sábado de maio e no dia 19 de setembro. Quando o fenômeno não acontece, é prenúncio de alguma desgraça futura. Para Perry Criscitelli, o líquido santificado parece ter empedrado neste ano de 2004. Este americano de 54 anos, descendente de napolitanos e com o porte do ator Danni De Vito, era o presidente da Figli di San Genaro Inc., empresa responsável pela organização do Festival de San Genaro, uma das procissões e festas de rua mais tradicionais de Nova York, que toma a zona de Little Italy, na baixa Manhattan. Criscitelli foi obrigado a renunciar depois de ter sido revelada sua conexão com o crime organizado. A denúncia veio de testemunhos colhidos no julgamento de Joseph Massino, “capo” da família mafiosa Bonanno. Desse modo, quando o andor com a imagem do santo dono da festa percorrer a famosa Mulberry Street, epicentro das festividades, além das polpetas e cannoli à venda nas barracas de calçada, estarão em exposição dois ex-promotores públicos, que assumiram postos de comando no comitê organizador.

Muito sangue já correu – no estado líquido, já que de pecadores – na Mulberry Street. Ao pé da letra e no sentido figurado. Quem assistiu ao filme O poderoso chefão – parte II (1974) se lembrará que foi naquela rua estreita que o jovem Vito Corleone (Robert De Niro) proferiu a famosa frase “Vou lhe fazer uma oferta que você não pode recusar” para Don Fanucci (Gastone Moschin), o chefão da comunidade. Em seguida, subiu nos telhados dos prédios da Mulberry e matou Fanucci, que caminhava numa procissão. Aquela era a festa de San Genaro. A Mano Nera sempre manteve mão de ferro na festa e na área. Era na Mulberry que o famoso John Gotti, ex-padrino da Famiglia Gambino, tinha seu quartel-general. Era a máfia quem distribuía os locais de concessões das barracas de alimentos, jogos e vendas de produtos. “Trata-se de um negócio de US$ 20 milhões por ano”, diz Rose Hear, comissária do departamento de Investigações da Prefeitura de Nova York. E na disputa por esta dinheirama, muita gente foi executada pelos mafiosos. Até que, em 1996, o então promotor federal Nelson Boxer se infiltrou na família Genovese e prendeu 18 pessoas ligadas à exploração da festa. Hoje, Boxer é um dos ex-promotores – o outro é Austin Campriello – apontados para o comitê da Figli di San Genaro Inc., com a saída de Criscitelli da presidência.

O chefão Joseph Massino, 63, foi condenado, em 30 de julho deste ano, a 25 anos de detenção em processos que vão desde o assassinato a fraude, extorsão, jogo ilegal, sonegação de impostos e conspiração. Massino começou sua carreira como ladrão de caminhões e foi subindo nos escalões da Família Bonanno. Preso em 1983, saiu da jaula dez anos depois e sua posição como padrino ficara precária. Com paciência, violência e muito cuidado, Don Massino recuperou terreno e colocou a casa em ordem. “Com a queda de Gotti (família Gambino) em 1992 e de Vincent “Chin” Gigante em 1997 (família Genovese), Massino era considerado o ‘último Don’, o último chefão de Nova York”, diz o capitão Frank Marciano, ex-policial do Departamento de Combate ao Crime Organizado da Polícia de Nova York.

Massino é dono do restaurante Casablanca, na região de Howard Beach, no Queens, tido como uma das melhores cozinhas italianas de Nova York. Uma vez por semana era possível ver o chefão comendo seu prato favorito – talharim com molho de frutos do mar – com seus associados, na mesa junto à porta do Casablanca. Mantinha também uma empresa, a King Cateres, de fornecimento de alimentos a vendedores de rua. “É aí que entra Criscitelli e a festa de San Genaro. Os barraqueiros da feira de rua do festival tinham de comprar mantimentos da King Cateres, além de pagar porcentagem das vendas (média de 6%) pelo ponto para Massino. Quando Criscitelli foi jurado como membro da família Bonanno, ele pagou US$ 150 mil para Massino”, diz o capitão Marciano.

Criscitelli está sendo investigado, mas não foi preso. Ele é dono de três restaurantes – um deles, o Da Nico, é o preferido do ex-prefeito e ex-promotor Rudy Giuliani, algoz da máfia, que não conhecia as filiações do proprietário. Por estar solto, o ex-presidente da Figli di San Genaro atenderá à freguesia de suas três barracas durante as festas entre os dias 16 e 19 de setembro. Muita gente comeu deliciosos sfogliatelli oferecidos pela mano nera. E quem recusaria esta proposta?