Um homem cometeu crimes contra a humanidade, mandou matar e torturar, condenou sem julgamento e fez da repressão o modus operandi de seu governo. Por mais que a Justiça tentasse levá-lo aos tribunais, ele sempre deslizou feito uma serpente. Mas, no final de sua vida, o destino lhe reservou um sombrio isolamento. Ironicamente, isso aconteceu não graças à condenação das atrocidades cometidas durante sua ditadura (1973 a 1990), mas ao desmoronamento de sua imagem de pessoa honesta. Torturador sim, mas desonesto não! O brado veio da direita chilena ao capitão-general Augusto Pinochet Ugarte, quando se descobriu que ele desviou US$ 8 milhões, entre 1994 e 2002, para contas secretas nos Estados Unidos. Jogado às traças, aos 88 anos, o ex-ditador vive enclausurado em seu próprio calabouço. Os amigos se afastaram, ele perdeu sua imunidade parlamentar de senador, o que abriu caminho para ser julgado agora por corrupção e por sua participação em 19 crimes cometidos pela Operação Condor (articulação dos aparatos repressivos das ditaduras sul-americanas nos anos 70 e 80).

“A direita chilena se importa mais com as acusações de corrupção do que com os crimes contra a humanidade. Pinochet é um torturador, um assassino, mas os direitistas pensaram que ele fosse um homem honesto. E o fato de ele não ser os fere muito mais, porque a direita se preocupa mais com o dinheiro do que com vidas. A corrupção e a violação dos direitos humanos vêm da mesma fonte: o poder do ditador”, afirmou a ISTOÉ o escritor chileno Ariel Dorfman, que leciona na Universidade de Duke, Carolina do Norte, nos EUA, autor, entre outros, de best-sellers como Para ler o Pato Donald, A morte e a donzela e O longo adeus a Pinochet. Em artigo publicado no jornal The New York Times, Dorfman afirmou que “foi o assassinato de três mil americanos inocentes por Osama Bin Laden e seus terroristas fanáticos que criou as condições para forçar um general chileno, que matou mais de três mil cidadãos em seu país, a responder em tribunais por atos terroristas”. As denúncias de corrupção que agora pesam contra Pinochet só foram descobertas porque o Senado americano, através do chamado Patriotic Act, decidiu investigar as contas de terroristas acusados pelos atentados de 11 de setembro. Ao verificar as contas da organização Al-Qaeda, o governo americano deparou com os depósitos ilegais feitos por Pinochet no Riggs Bank, sediado em Washington.

Descobertas as falcatruas em junho deste ano, a direita chilena se distanciou do líder que por décadas apoiou. Ao contrário de outros anos, no último dia 11, em que foram lembrados os 31 anos do golpe que levou Pinochet ao poder e destituiu o governo democrático do presidente socialista Salvador Allende, poucos foram dar seu abraço no ex-ditador em sua casa no bairro de La Defensa, em Santiago. Se antes Pinochet era o centro das atenções, com várias comemorações, desta vez apenas missas discretas foram feitas pelo Exército em homenagem aos soldados mortos naquele 11 de setembro chileno. Nos últimos quatro anos, desde que o presidente Ricardo Lagos, do Partido Socialista – o mesmo de Allende –, assumiu, crescem as homenagens a Allende e diminuem as loas a Pinochet, em um país que sempre se dividiu ao meio quando se tratava de julgar o legado da ditadura. Neste aniversário, as organizações de direitos humanos e os socialistas realizaram uma grande marcha com cinco mil pessoas rumo ao túmulo de Allende, em Santiago, onde foram depositadas dezenas de flores. Alguns manifestantes gritavam: “Prisão para Pinochet, agora!”

Garzón – Em entrevista ao jornal O Globo, o juiz espanhol Baltasar Garzón, responsável pelo pedido de prisão que deteve Pinochet durante 18 meses na Inglaterra em 1998, afirmou que não deverá haver obstáculo para processar o ex-ditador. “O argumento que havia para não fazê-lo era enfermidade mental. Depois da entrevista que o ex-presidente deu a uma emissora de televisão  de Miami, ficou claro que essa enfermidade não existe e ele está em condições de ser levado a juízo”, disse Garzón. Para o escritor Dorfman, independentemente do resultado do processo contra Pinochet, este já valeu  a pena, porque trouxe à tona a discussão sobre as lideranças repressoras. “Vivemos um momento da história em que muitos líderes estão sugerindo – e frequentemente anunciando –que em nome da luta contra a praga do terrorismo precisamos limitar as liberdades civis. Mas foi precisamente esse o rumo tomado pelo general Pinochet, que cometeu crimes financeiros e contra a humanidade. Essas violações da confiança pública, que só aparentemente se diferem, surgiram na mesma atmosfera de segredo”, escreveu ele.