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Na introdução de seu terceiro livro, “A Arte de Ser Desagradável” (Bertrand Brasil), o escritor americano Jim Knipfel dispara: “Sempre que ouço a palavra ‘espiritual’ saco o meu revólver.” É o tom do que vem pela frente, uma narrativa autobiográfica sobre a trajetória acidentada de um jovem anárquico, depressivo e antissocial que age todo o tempo como um tolo. A obra tem muito humor e é escrita da perspectiva de um homem maduro que evita sua total decadência com preceitos do que chama de “budismo para cachaceiros”.

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Leia trecho do primeiro capítulo de "A Arte de Ser Desagradável"

Em abril de 1997, o Red River, encorpado pela neve derretida de uma nevasca anterior, subiu 16 metros, ficando oito metros acima do nível de enchentes. A água gelada e imunda devastou as margens do rio com ira bíblica, rompendo as altas encostas dos diques artificiais e avançando furiosamente para tirar do mapa Grand Forks, a cidade em que nasci, na Dakota do Norte.
Quando a situação ficou periclitante, os habitantes de Grand Forks — todos os 50 mi — foram aconselhados a evacuar o local. No fim, só dois mil ficaram. Estima-se que, num período de apenas alguns dias, 90% da cidade tenha sido submersa pela enchente.
Praticamente todas as casas e edifícios comerciais da área foram alagados.
Por pura ironia, o prédio no centro da cidade que abrigava o jornal foi arruinado por um incêndio em meio a toda aquela água.
Os que foram obrigados a partir, levando consigo apenas o que conseguiam carregar, abandonaram suas casas em cima da hora e encontraram abrigo em uma base da Força Aérea e nos auditórios das escolas locais. Deixaram para trás relíquias de família, fotografias, todos os itens que faziam parte de suas vidas antes de as águas começarem a subir. Quando tudo chegou ao fim, quando o Red River serenou e a maré começou a baixar, veio a boa e extraordinária notícia: ninguém havia morrido.
Não sei explicar por que a destruição de Grand Forks me afetou daquele jeito. Toda semana, lemos sobre desastres naturais — incêndios, enchentes, secas, tornados, furacões e terremotos — destruindo a vida de milhares de pessoas em algum lugar do mundo.
Geralmente, ouvimos essas notícias e logo as esquecemos, à medida que outras histórias vão ganhando prioridade nos jornais e na televisão.
As mais recentes são sempre as mais interessantes. Mas acompanhei as reportagens sobre Grand Forks compulsivamente, rastreando-as à medida que iam rareando e ganhando menos destaque nos jornais.
Não que me lembre do lugar — a minha família deixou a base aérea antes de eu completar um ano de idade. Mesmo tendo passado por Grand Forks nas férias de verão quando era criança, não me lembrava de nada — nem de um prédio, um nome de rua, um ponto de referência sequer. Então por que me importar com aquilo? Enchentes acontecem o tempo todo. Eu não conhecia ninguém lá e Ele sabe que eu tinha os meus problemas para resolver. No entanto, quando soube das notícias, senti-me vazio, triste, frustrado. Não havia nada que pudesse fazer. E que diabos poderia ter feito? Mandado umas esponjas?
Daquelas grandonas? Ou talvez algumas camisas velhas de bandas punk que eu não ia mais usar mesmo?
Na época, nem dinheiro para mandar eu tinha. Só podia acompanhar as notícias e ficar mal. Eu tinha dificuldade até mesmo para imaginar o nível de devastação, tão distante aquilo era da minha realidade.
Já vira tornados e um monte de nevascas, mas nunca uma enchente.
Nenhuma grave, pelo menos.
Quando falei com meus pais no telefone sobre a enchente, descobri que eles estavam acompanhando as notícias com a mesma regularidade que eu. Eles me contaram que o hospital no qual nasci foi tragado pela água e que todos os antigos registros médicos, arquivados no porão, haviam sido destruídos.
Meus pensamentos vagaram, como tendem a fazer diante do remoto e do desconhecido. Aos poucos, fui deixando de pensar nos coitados que deviam estar ensopados e tremendo de frio, envoltos em cobertores que lhes pinicavam, sentados em camas de lona do exército, contemplando a possibilidade de refazer seus lares e suas vidas do zero. Comecei então a refletir sobre o lugar no qual eu estava, no pequeno apartamento no Brooklyn que dividia com dois gatos, milhares de livros que não posso mais ler e uma sacola de lixo pendurada na maçaneta, esperando ser levada para fora.
Não que eu tivesse perdido alguma coisa. Nada tangível, pelo menos. Aquelas pessoas haviam perdido álbuns de família e coleções de cartas escritas pelos avós na virada do século. Teve uma senhora que, em sua fuga desesperada, perdeu a aliança de casamento que a mãe passara para ela. Pessoas haviam perdido suas casas, seus carros, seus empregos. Meu apartamento continuava são e seco e meus pertences, ainda que escassos, estavam intactos.
Quando soube da real gravidade da destruição, a única coisa que consegui pensar, por mais insensível e egoísta que possa parecer, foi que a cidade em que nasci morreu. Era como se um tipo de alicerce metafísico tivesse evaporado sob meus pés. Eu me senti vazio; era como se um dos voluntários que ajudaram na limpeza após a catástrofe tivesse raspado minhas entranhas com uma pá. Eu me dei conta de que a minha certidão de nascimento, a prova documental concreta de que eu havia nascido um dia, agora não passava de um refugo encharcado da enchente.
Datava de 1965, muito antes de coisas do tipo serem arquivadas em bancos de dados no computador. Era um pedaço de papel mesmo, com estatísticas e assinaturas oficiais, que provava inquestionavelmente que eu chegara ao mundo. E agora, a evidência original, caso precisasse exibi-la por algum motivo, não existia mais.
É claro que eu tinha documentos posteriores — carteiras de motorista, passaportes etc. —, mas a certidão de nascimento era a número um. Sabia que não significava nada, mas, como eu disse, era uma questão metafísica que, à sua maneira metafísica, me deixou à deriva. Após tantas tentativas de me remover fisicamente do mundo, por que diabos eu estava tão preocupado com uma certidão de nascimento?