O filme “Baarìa – A Porta do Vento”, do italiano Giuseppe Tornatore, foi lançado no Festival de Veneza deste ano e está em cartaz nos cinemas brasileiros. Embora tenha sido alvo de duras críticas, como um filme indigesto, longo e confuso, e mesmo que não seja o melhor filme de todos os tempos, é um belo filme, como já não se produz mais – épico e amoroso, político e sentimental, grandioso. Guarda parentesco com “Amarcord” e “1900”, clássicos dos conterrâneos Fellini e Bernardo Bertolucci. Com o primeiro, tem em comum o tom memorialista e delirante, ao contar, através dos olhos e sentimentos de um menino, a dura vida na Baghería (Baarìa em dialeto regional), uma aldeia da Sicília. O tom de registro histórico, que mostra as transformações políticas da Itália desde o surgimento do fascismo, a eclosão da Segunda Guerra e o fortalecimento do Partido Comunista, faz dele um primo de segundo grau do filme de Bertolucci, que é um retrato mais cru e cruel da história do país desde o início do século XX até sua metade, passando pela ascensão de Mussolini até o fim da guerra.

Entre todas as belas e plásticas cenas do filme “Baarìa”, entre todas as tocantes e passionais histórias lá contadas, a passagem que mais me chamou a atenção – e, por que não dizer, me comoveu de fato – foi a cena em que o pai do personagem protagonista Peppino está moribundo na cama à espera do filho, que naquela altura lançara sua candidatura a um cargo político pelo Partido Comunista. Toda a família e a vizinhança estão em redor do velho senhor, aguardando ansiosamente a chegada do filho político, orgulho da família pobre. Em certo momento o irmão de Peppino, temendo que o pai se vá sem ver o filho pela última vez, fala algo como: “Ele já virá, pai, está ocupado demais com a campanha…”. Ao que o pai responde, com fervor idealista: “É, filho, a política é bela! A política é bela!”… Depois de certo suspense, enfim Peppino chega à casa paterna e abraça o pai que o esperava para partir. E então o pai morre.

O que há de tão belo nessa cena banal? Há a fé, de alguém que passou por tantas intempéries e dores – desde o terror de uma guerra e privações como a fome até a liberdade roubada pelo regime fascista e a submissão aos mafiosos donos da cidade –, a fé comovente na política como elemento transformador da realidade, a serviço de ideais nobres, com propósitos éticos, libertadores, como agente do bem coletivo. Transpondo a cena para os tempos cínicos de hoje, a fala do pai de Peppino soaria no mínimo ingênua. Há hoje quase uma cobrança da sociedade aos incautos crédulos, aos que ainda creem na política. É como se fosse um pecado, uma pureza imperdoável alimentar a fé nas instituições e discursos políticos, nas plataformas dos candidatos, na verdade de suas falas…

Há uma semana o povo foi às urnas eleger presidente, governadores, senadores e demais parlamentares. Mas foi pela obrigação do voto, sem paixão, sem fé nem vontade. Nunca ouvi tanta gente falando em votar nulo como neste ano. Seria simplório (e óbvio) dizer que a falta
de ânimo do povo com a política é responsabilidade dos políticos, de sua cara de pau e ganância sem fim, suas corrupções e desmandos, sua falta de escrúpulos e seu descaso para com o sofrimento e as faltas do povo. Nem por isso deixa de causar estranheza o desinteresse do eleitor com a matéria, com o futuro político e econômico da nação. Talvez estes tempos de luta insana pela sobrevivência e de evasão virtual favoreçam um certo silêncio – e omissão – da população. O que torna cada vez mais improvável que a fala do personagem de Tornatore caiba um dia em nossas bocas sem esperança.

 

Zeca Baleiro é cantor e compositor