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Ao final da reunião em Genebra, na Suíça, que marcou o fracasso da Rodada de Doha, de liberalização do comércio mundial, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, parecia cambaleante, como um boxeador prestes a ir a nocaute. Sua primeira lembrança foi uma frase do escritor italiano Italo Svevo: "Me lembro de tudo, mas não entendo nada." Certamente, Amorim jamais se esquecerá do impasse que fez retornar à estaca zero sete anos de conversas entre os países para estabelecer regras mútuas de competição comercial. Inesquecível para Amorim, o fracasso certamente será também difícil de entender. De todos os 35 países que participaram da reunião em Genebra, é possível que o Brasil seja mesmo o que saiu mais prejudicado. O Brasil apostou todas as suas fichas na Rodada de Doha. Nos últimos anos, praticamente abandonou a formulação de acordos bilaterais jogando na multilateralidade da Organização Mundial de Comércio. Com o fracasso, terá de correr atrás de acordos país a país. Provavelmente, terá de ceder bem mais do que cederia na negociação multilateral de Doha.

O erro que Amorim terá de tentar entender na aposta que fez parece estar associado à complexidade do mundo atual, que cada vez cabe menos no antigo modelo maniqueísta de conflito Norte-Sul, de países ricos contra países pobres e/ou emergentes. Enquanto acontecia a reunião de Genebra e os países radicalizavam as suas posições, o Brasil foi percebendo que se metera numa enrascada. Desde a primeira reunião, em Doha, capital do Qatar (daí porque a série de conversações ganhou o nome de Rodada de Doha), em novembro de 2001, o Brasil foi consolidando a estratégia de que os países emergentes deveriam se unir para juntos pressionarem os países desenvolvidos. Na segunda reunião, em 2003, em Cancún, no México, o País patrocinou a criação do G-20, o grupo de países emergentes que a partir daquele momento deveria passar a agir unido na queda-de-braço com os desenvolvidos. Na capital suíça, o Brasil deu-se conta de que, na agricultura – e, em parte, também na indústria -, seus interesses aproximavam-se em muitos pontos mais das nações desenvolvidas que dos seus parceiros tradicionais. Ao mudar de posição, com o fracasso nas negociações, ficou mal com todo mundo: rompeu suas antigas alianças sem lucrar na aproximação episódica com os desenvolvidos.

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Caso se mantivesse fiel à unidade do G-20, o Brasil teria que ser tão protecionista quanto Argentina e Índia no campo industrial, e abrir mão completamente de buscar o mercado agrícola indiano e chinês, porque aceitaria e apoiaria que os dois países se mantivessem fechados. O ponto que bloqueou as negociações foi a discussão sobre salvaguardas para países em desenvolvimento no caso da produção agrícola. A Índia propunha que tais salvaguardas pudessem começar a ser usadas sempre que as importações de um país ultrapassassem 10% da média de compras externas nos últimos três anos.

A partir desse patamar, o país ficaria autorizado a sobretaxar as importações em valores acima dos estabelecidos pela OMC. Os Estados Unidos não aceitaram essa discussão. A Índia tinha o apoio da China e dos países importadores de alimentos, como os africanos, a Venezuela e os países da América Central. Aceitava, no máximo, elevar esse patamar para 15%. O diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, apresentou uma proposta alternativa, que estabeleceria a possibilidade de salvaguardas a partir de um patamar de 40% de compras acima da média dos últimos três anos. A proposta era apoiada pelos Estados Unidos e pela União Européia. Também potência agrícola, interessada em entrar nos grandes mercados indiano e chinês, o Brasil aderiu à proposta. O acordo fracassou. "Uma força irresistível se encontrou com um objetivo inamovível e jogou o compromisso para fora da janela", resumiu o comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson.

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O cenário depois do fracasso preocupa o meio empresarial brasileiro. "O colapso da reunião enfraquece o sistema multilateral de comércio", avaliou a Confederação Nacional da Indústria, em nota divulgada na quarta-feira 30. O sucesso de Doha, diz a CNI, representaria "uma garantia de controle do protecionismo e o aperfeiçoamento de regras estáveis para o comércio brasileiro". Uma preocupação do setor agrícola é que os acordos bilaterais que virão a ser feitos pressionem o Brasil a incluir mais cláusulas de garantias ambientais e trabalhistas. "Esses temas entrarão inevitavelmente na pauta", considera o assessor técnico da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), Mateus Zanella. "Agora, é hora de arregaçar as mangas e acelerar as negociações de acordos bilaterais", avaliou o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos (Anfavea), Jackson Schneider.