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O personagem central de “Solar”, novo romance do autor britânico Ian McEwan, já é forte candidato a integrar a galeria dos marcantes anti-heróis da literatura. Michael Beard é um físico ganhador do Nobel que acomoda-se em um cargo burocrático e usa seu prestígio para satisfazer caprichos. Irônico e de humor corrosivo, ele protagoniza passagens engraçadas e desconcertantes – por meio dele, McEwan destila a cada página toda sorte de misérias humanas.

Leia abaixo trecho de "Solar"

Ele pertencia àquele gênero de homens — vagamente feiosos, quase sempre carecas, baixos, gordos e inteligentes — que exercem uma atração inexplicável sobre certas mulheres bonitas. Ou achava que pertencia, o que parecia ser suficiente para transformar o desejo em realidade. No que era ajudado pelo fato de algumas mulheres o tomarem por um gênio que precisava ser salvo. Entretanto, naquela altura da vida Michael Beard era um homem de funções mentais limitadas, desprovido de impulsos hedônicos, monotemático, ferido. Seu quinto casamento estava se desintegrando e ele deveria saber como se comportar, como enxergar as coisas numa perspectiva de longo prazo, como aceitar a culpa. E não era verdade que os casamentos, ou seus casamentos, se assemelhavam às marés, uma vazando pouco antes que outra subisse? Mas este era diferente. Ele não sabia o que fazer, a visão do futuro o machucava e, por uma vez, a seu juízo não lhe cabia nenhuma culpa. Sua mulher é que estava tendo um caso, e de forma ostensiva, para puni‑lo, certamente sem sentir remorso algum. Em meio a outras emoções, ele se via exposto a momentos de intensa vergonha e desejo. Patrice estava se encontrando com o sujeito que fizera uma reforma na casa deles, aplicando argamassa entre os tijolos das paredes externas, instalando uma cozinha nova e substituindo os azulejos no banheiro, o mesmo indivíduo corpulento que, durante uma pausa para tomar chá, certo dia mostrara a Michael a fotografia da casa em falso estilo Tudor restaurada e tudorizada com suas próprias mãos — onde, no caminho cimentado para a garagem, se via uma lancha sobre um reboque debaixo de um lampião supostamente vitoriano e o espaço onde seria instalada uma desativada cabine telefônica vermelha. Beard havia se surpreendido ao descobrir como era complicado ser um corno. O sofrimento não era simples. Prova de que, mesmo tão tarde na vida, ele não estava imune a novas experiências.
Tinha de acontecer. As quatro mulheres anteriores — Maisie, Ruth, Eleanor e Karen —, que ainda mantinham um interesse longínquo por sua vida, teriam ficado exultantes, e ele esperava que ninguém lhes contasse nada. Nenhum dos casamentos durara mais de seis anos, e já era notável o fato de ele nunca haver tido filhos. Bem cedo, compreendendo que Beard tinha tudo para ser um pai horrível, elas haviam se protegido e tratado de dar o fora. Ele gostava de pensar que, se houvesse causado alguma infelicidade, nunca fora por muito tempo, não sendo à toa que mantinha um relacionamento amigável com todas as quatro.
Não, porém, com a atual. Em outros tempos, poderia haver imaginado que assumiria uma atitude cinicamente machista, com acessos de fúria assassina, talvez uma sessão de gritos no jardim dos fundos tarde da noite após se embriagar, ou o cancelamento do registro do carro dela enquanto cortejava deliberadamente uma mulher mais moça — em suma, se fazer de Sansão para derrubar o templo matrimonial. Em vez disso, estava paralisado pela vergonha, pela enormidade de sua humilhação.
Pior ainda, surpreendia‑se com o desejo inconveniente que sentia por ela. Naqueles dias, a vontade de possuir Patrice o acometia assim sem mais nem menos, como um ataque de cólicas. Era obrigado a sentar sozinho em algum canto e esperar que passasse. Aparentemente, havia certo tipo de marido que se excitava com a ideia de que sua mulher estava com outros homens. Eram capazes de conseguir que alguém os manietasse e amordaçasse, fechando‑os à chave no armário do quarto enquanto, a poucos passos dali, sua cara‑metade estava em plena função. Será que, enfim, Beard havia percebido ter uma queda pelo masoquismo sexual? Nenhuma mulher jamais parecera ou soara tão desejável quanto a esposa que ele de repente não podia mais possuir. Deixando claras suas intenções, viajou para Lisboa a fim de se encontrar com uma velha amiga, porém foram três noites sem alegria. Precisava ter sua mulher de volta, não ousando afastá-la de vez com berros, ameaças ou momentos brilhantes de insanidade. Nem era de sua natureza suplicar. Estava congelado, desprezível, não podia pensar em mais nada. Na primeira vez em que ela lhe deixou um bilhete — Vou passar a noite na casa do R. Patrice —, Beard deveria ter ido à reles casa geminada em falso estilo Tudor, com a lancha coberta na entrada da garagem e uma banheira no quintal diminuto, para arrebentar a cabeça do sujeito com sua própria chave‑inglesa. Em vez disso, ficou vendo televisão durante cinco horas sem tirar o casacão, bebeu duas garrafas de vinho e tentou não pensar. Mas fracassou.