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SEM MUROS
O Central (acima) foi um espaço de liberdade. Jornal do colégio (abaixo) registra trajetória da ex-aluna famosa

 

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"Castelo Branco vai sair, mas o próximo presidente da República será muito pior.” Dilma Rousseff tinha 16 anos quando alertou colegas de classe sobre o provável recrudescimento da ditadura no Brasil. “Ela era a nossa analista. Sempre nos mantinha informados sobre o andamento da política nacional”, lembra o empresário Lindolfo Paoliello. Era 1964. João Goulart fora deposto pelos militares e o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco alçado ao poder. O Colégio Estadual Central, onde Dilma e Paoliello eram representantes de turma e debatiam sobre a conjuntura do País, era considerado o melhor ensino secundário de Belo Horizonte e uma espécie de ícone urbano da capital mineira. Projetado pelo arquiteto comunista Oscar Niemeyer com a proposta de ser um espaço público e democrático, não tinha muros. Abrigava uma porção de tribos e correntes ideológicas. Era um caldeirão social, político e cultural em constante ebulição.

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POR POUCO
A paixão pela música livrou Márcio Borges
(ao lado) da clandestinidade

 

“O movimento estudantil secundarista de Belo Horizonte nasceu no Estadual Central”, afirma a educadora Aleluia Teixeira, autora de uma tese de doutorado sobre o colégio. “Os alunos de lá eram irreverentes e críticos porque tinham abertura para isso. O diferencial do Estadual era que a liberdade era consentida e o autogoverno estimulado.” Aleluia conta que, quando a direção tentou implantar o ensino religioso, os estudantes se mobilizaram alegando ter crenças diferentes. A variedade apontada por eles foi tão grande que inviabilizou a nova disciplina. O colégio se tornou um dos principais focos de resistência da juventude mineira porque era heterogêneo e plural. Diversas organizações de esquerda presentes ali – como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Ação Popular (AP) e a Política Operária (Polop) – estavam vinculadas, também, aos estudantes universitários.

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UNIÃO
Amiga desde a infância, Sônia Lacerda (acima) esteve
ao lado de Dilma em grupos de esquerda

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Dilma ingressou na Polop recém-chegada ao Estadual Central. Sempre manteve uma postura discreta. Não costumava subir em caixotes para fazer discursos, mas era considerada uma competente articuladora. “Dilma era do comitê político da Polop e uma das supervisoras dos secundaristas”, relata o psicólogo Ageu Heringer Lisboa. “Logo que entrei para o grupo, me reportava a ela. Dilma não era sisuda, nos valorizava e nos tratava de igual para igual. O nosso compromisso de lutar por um mundo mais justo era visceral.” Os horrores da Guerra do Vietnã e a glorificação da Revolução Cubana funcionaram como grandes aglutinadores da juventude. A moçada da Polop vivia promovendo sessões de cinema alternativo, passeatas e comícios-relâmpago para escancarar os problemas do mundo.

No período em que Dilma estudou no Estadual Central, de 1964 a 1966, a ditadura militar ainda não tinha se radicalizado e tolerava algumas manifestações de protesto. Apesar disso, o momento político exigia que as organizações de esquerda agissem de maneira cada vez mais reservada. Tanto que uma das melhores amigas de Dilma diz que, naquela época, não sabia da ligação dela com a Polop. “Conversávamos sobre política, mas ela não deixava transparecer que pertencia ao grupo e nem como a Polop se organizava”, afirma Sônia Lacerda Macedo.

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APOIO
Marco Antônio Meyer, ex-líder da Polop,
acha Dilma preparada para a Presidência

 

Sônia e Dilma se conheceram na infância. Estudaram juntas no Colégio Nossa Senhora de Sion e no Santa Doroteia – ambos católicos, exclusivos para meninas – e durante o primeiro ano do Estadual Central. Depois, se reencontraram na universidade e se tornaram companheiras no Comando de Libertação Nacional (Colina) e na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Sônia acompanhou de perto a ascensão da amiga. Trabalhou na Casa Civil, o ministério comandando por Dilma, até julho de 2010. “Quando entramos no Estadual Central, havia apenas quatro mulheres na sala. Nos separamos quando fui para o turno da tarde e ela permaneceu no da manhã”, lembra Sônia. Mas a relação extraclasse continuou. Não havia uma divisão muito clara entre os jovens vinculados a grupos de esquerda e os “simpatizantes”. “Era difícil traçar fronteiras porque também nos expressávamos através da música, da literatura, do teatro”, argumenta Sônia. “Íamos a locais frequentados por pessoas de tendência mais progressista, que eram contra a ditadura, mas não estavam necessariamente ligadas a alguma organização.”

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CRÍTICA
Antigo colega, Luiz Bernardes diz que candidatos
abandonaram a esquerda

 

O compositor Márcio Borges, integrante do Clube da Esquina, era um dos habitués do Bar do Lucas – um dos pontos de encontro dos belo-horizontinos engajados – e se tornou amigo de Dilma. “Tínhamos em comum um grande amor pelas causas sociais. Não fui para a clandestinidade porque a música me segurou”, diz Borges. Ele lembra que Dilma chegou a levá-lo a um bar conhecido como Bucheco, um dos primeiros da capital mineira a ser frequentado por moças, onde o pessoal da Polop se reunia. Era um ambiente existencialista, na penumbra, com cadeiras despojadas e caixotes no lugar dos bancos, tomado pela fumaça que saía dos cigarros. “O lugar era maneiro, ficava malocado em cima de uma sauna”, diverte-se Borges. “A gente não era de balada, mas de sentar e ficar discutindo política, literatura e filosofia.” De vez em quando, a turma filava boia na pensão da Odete, jogava buraco e assaltava a geladeira da mãe de Dilma para incrementar o cardápio das festas. Dilma era “Dilminha”. O cinéfilo Borges era “Marcinho Godard”. Havia também o “Carlinhos Flexível”, um rapaz que conseguia dar saltos incríveis para chutar as placas de sinalização dos ônibus.

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OUTRO LADO
Marcelo Diniz era um dos alunos do Central
que não se interessavam por política

 

Uma das modestas fontes de renda da Polop era uma pequena livraria instalada no lendário Edifício Maletta, um prédio alto no centro de Belo Horizonte, com dois andares cheios de bares com mesas na calçada, restaurantes baratos e lojas. “Aproveitávamos para importar obras de esquerda que os grandes livreiros não podiam encomendar”, afirma José Aníbal, atualmente deputado federal pelo PSDB. Dilma e Aníbal eram amigões. Embora ele não fosse aluno do Estadual Central, a Polop os unia. Os dois varavam madrugadas falando sobre política ou estudando para o vestibular. Como Aníbal não era muito bom em matemática, tomava aulas com a amiga. “Dilma era ligadíssima em cinema, intelectualizada, fazia citações de Simone de Beauvoir”, diz o petista Nilmário Miranda, colega de Polop e ex-secretário nacional de Direitos Humanos. “Aquele era um mundo totalmente novo para mim. Eu morava no interior de Minas. Fui para Belo Horizonte me preparar para o vestibular e, também, porque queria participar da resistência à ditadura.”

Assim como Miranda, muitos jovens se sentiam impelidos a combater os militares. O historiador Amílcar Martins Filho aderiu ao PCB. “Apesar de termos divergências, a ditadura nos aproximava da Polop”, relata. O irmão dele, o economista Roberto Martins, foi colega de classe de Dilma. Também militante do PCB, Roberto lembra que a petista mantinha uma postura reservada. “Mas não era tímida, de ficar escondida”, diz. Tanto Amílcar quanto Roberto continuam na política até hoje. Não disputam eleições, mas são figuras importantes no PSDB de Minas. Embora o colégio fervilhasse e o momento fosse de exceção, nem todos os alunos se interessavam por política. Durante o recreio ou nos intervalos das aulas, a classe de Dilma se dispersava. “Havia um canto no pátio onde ficávamos falando de história, filosofia, sociologia, festas e, às vezes, até de política. Ali, ninguém era de esquerda ou de direita”, afirma o publicitário Marcelo Diniz. “Às vezes, a Dilma chegava, se inteirava do assunto e começava a discutir, sempre intransigente, sempre exaltada.”

Dilma não é unanimidade entre os antigos colegas do Estadual Central. Como em todo o País, tem apoiadores e críticos. “Acredito que ela esteja gabaritada para ser presidente”, diz o comerciante Marco Antônio Meyer, um dos mais aguerridos militantes da Polop. Meyer participou do roubo do cofre do governador Ademar de Barros e foi um dos presos políticos trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, em 1970. “Dilma tinha uma espécie de auréola de pessoa combativa. Era respeitada e apontada como extremamente capaz”, afirma o economista Luiz Bernardes, ex-integrante da AP. “Mas, infelizmente, tanto ela quanto o Serra renegam esse passado. Embora os dois tenham surgido em movimentos de resistência à ditadura, hoje, eles não representam mais a antiga luta da esquerda.”

 



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