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Se Dilma Rousseff tives­se escapado daquele arrastão policial, seu destino provavelmente seria outro. Eram tempos estranhos. Dilma foi presa numa operação que mandou para os porões da repressão uma leva de militantes da Vanguarda Armada Revolucionária (VAR), grupo político que ela integrava. Durante 22 dias, foi moída a pancadas e choques elétricos por torturadores do Exército. Ficou quase três anos na prisão. É possível imaginar que, se não tivesse sido capturada pelas três equipes de agentes que a cercaram no centro de São Paulo no dia 16 de janeiro de 1970, Dilma teria seguido sua militância na VAR. Dois anos depois, então, ela poderia ser uma das pessoas escondidas na casa de número 8.695 da avenida Suburbana, no bairro de Quintino, no Rio de Janeiro. Tratava-se de um “aparelho” da VAR, como se chamavam os endereços clandestinos. Dilma talvez estivesse ali no lugar de Lígia Maria Salgado Nóbrega.

Lígia nasceu em 1947, como Dilma. Levava uma típica vida de classe média em São Paulo, semelhante a que Dilma tinha em Belo Horizonte. Em 1964, Lígia iniciou o curso de normalista no Colégio Fernão Dias Paes, no bairro de Pinheiros, enquanto Dilma entrava no Colégio Central, na capital mineira. Ambas começaram a se interessar por política nessa época. Em 1967, Lígia ingressou na Faculdade de Pedagogia, da USP. Dilma, na Faculdade de Economia, da UFMG. A exemplo de Dilma, Lígia era frequentadora assídua do centro acadêmico. Míope, pendurava no rosto miúdo óculos grossos, parecidos com os que Dilma usava. Ela era baixinha, tinha os cabelos castanhos curtos, repartidos ao meio. Antigos colegas se lembram de sua voz firme nas assembleias, quase uma surpresa para o jeito quieto que cultivava. No final de 1969, Lígia se vinculou a uma célula da VAR em São Paulo. Dilma fez o mesmo em Minas. No ano seguinte, as duas já eram militantes perseguidas pela polícia. Ao contrário de Dilma, Lígia conseguiu safar-se das quedas sofridas pela VAR em 1970 e se escondeu no Rio. Manteve-se na clandestinidade até aquele 29 de março de 1972, quando policiais do Dops varejaram o aparelho de Quintino. Houve tiroteio no local e um militante conseguiu fugir. Os outros três que estavam na casa foram presos: Lígia com um tiro no braço, Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo com um tiro na perna e Antônio Marcos Pinto de Oliveira sem ferimentos aparentes. No dia seguinte, o corpo de Lígia deu entrada no IML, vindo do Dops carioca. Tinha escoriações e manchas escuras pelas costas e a marca inequívoca da execução: um tiro na cabeça. Lígia ia fazer 25 anos e estava grávida de dois meses. A família do carioca Antônio Marcos recebeu seu corpo num caixão fechado. Ex-seminarista e poeta, ele havia morrido, segundo a autópsia, por “feridas transfixantes de tórax e abdome”, que lhe perfuraram vários órgãos internos. O corpo de Maria Regina, 34 anos, filha de um pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, formada em filosofia, também chegou ao IML no dia 30. Assim como Lígia, ela levara um tiro na cabeça. Hoje, Lígia Salgado Nóbrega é o nome de uma praça comunitária em Cidade Ademar, no subúrbio paulistano.

A vida sempre andou por um triz para os jovens da geração de 68 que enfrentaram o regime militar. A diferença da sorte de Dilma e Lígia é que, entre a prisão de uma e o assassinato da outra, a ditadura tinha mudado. Em 1968, o Exército havia aprendido a torturar, sempre justificando a ignomínia com o combate ao perigo terrorista. No ano seguinte, com a prática da tortura já disseminada, passaram a ser registradas algumas mortes em dependências oficiais. A maioria era de vítimas dos tenebrosos “acidentes de trabalho” dos torturadores. Em 1971, apenas um ano após a prisão de Dilma, passou a ser raro sair vivo dos porões da ditadura. A máquina da repressão tinha sido orientada para o extermínio, a eliminação total dos adversários. Os militares, então, operavam centrais como a Casa da Morte, em Petrópolis, no Rio, de onde ninguém escapou com vida. Em 1971 a repressão matou 50 pessoas, superando os 29 assassinatos do ano anterior. Entre dezembro de 1972 e outubro de 1973, houve 43 mortes.

Para uma parcela dos jovens da época, portanto, não é exagero falar em sobreviventes. Em 1988, quando se comemoravam os 20 anos de 68, Vladimir Palmeira, um dos ícones das manifestações estudantis que deram cara ao período, se lastimava: “A minha geração é a um só tempo gloriosa e angustiada: fomos presos, torturados, mortos, exilados e não conseguimos chegar a lugar nenhum.” Palmeira estava, então, participando da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, que, apesar da idade, era um típico produto da geração de 1977, a que apressou o fim de ditadura militar. “Veja só, hoje apoio um sujeito da minha idade, mas que em 1968 era um reacionário”, constatava.

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A DILMA QUE MORREU
As vidas de Lígia Nóbrega (foto) e Dilma se cruzaram.
Mas a ditadura determinou um destino diferente para as duas

 

O destino perdedor que afligia Palmeira estará superado quando Dilma subir a rampa do Palácio do Planalto para sua posse, no dia 1º de janeiro: 1968, enfim, terá terminado. “A minha geração é vencedora”, comemora agora o ex-ministro José Dirceu. “Chegou ao lugar que merece”, disse ele à ISTOÉ. Ainda um influente dirigente do PT, José Dirceu segue sem condições políticas de assumir cargos públicos. Outras figuras centrais de 68, no entanto, chegam ao poder ao lado de Dilma cotadas até para ocupar ministérios. O ex-prefeito de Belo Horizonte Fernando Pimentel, amigo íntimo da presidente eleita, é um deles. Pimentel foi um ativo militante da VAR, o mesmo grupo de Dilma e Lígia. Também pertenceram às organizações armadas o ministro da Comunicação Social, Franklin Martins (Movimento Revolucionário 8 de Outubro, MR-8), o assessor da presidência Marco Aurélio Garcia (Partido Operário Comunista, POC), o ex-ministro do Meio Ambiente Carlos Minc ( VAR) e mais uma penca de secretários e assessores do atual governo.Todos são entusiastas dos velhos tempos. Marco Aurélio Garcia, que era conhecido como Mag nos grupos clandestinos, já disse que os anos 60 foram “um momento luminoso do século passado.” No livro “1968, O Ano que Não Terminou”, do jornalista Zuenir Ventura, Franklin Martins recordou: “Não nos preocupava tanto se íamos ou não vencer. Estávamos preocupados em lutar.” Martins comandava colunas de estudantes nas passeatas de 68 e, no ano seguinte, participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. Hoje ele se considera mais reformista, embora diga que ainda guarda um tanto do espírito da época: “A justiça social continua sendo o que me movimenta na política.”

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Especialista em 68, Zuenir Ventura defende que a turma que pegou em armas para combater a ditadura representa apenas uma parcela daquele ano cheio de sonhos e mudanças. “E não foi com um discurso revolucionário que este pessoal venceu eleição”, disse ele à ISTOÉ. As facções da luta armada eram uma retumbante minoria. Em 1971, num informe ao Senado americano, o diretor da CIA, Richard Helms, afirmou que “o número de pessoas metidas com terrorismo no Brasil nunca passou de mil.” Os militares brasileiros, interessados em superestimar o perigo vermelho, foram mais pródigos nas estimativas. O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante em São Paulo do Destacamento de Operações Internas do Exército, o famigerado DOI, contou 1.650 militantes nas diferentes organizações armadas, entre 1968 e 1974 (veja quadro na página seguinte). Grupos temidos como a Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella, não tiveram mais do que 250 membros ao longo desses anos. A VAR, de Dilma, Pimentel e Minc, outros 200. O POC, de Marco Aurélio Garcia, juntava apenas 30 pessoas, segundo Ustra. Quando se fala em geração, contudo, sempre se está referindo ao que houve de emblemático num determinado tempo. O lado escolhido como representativo não precisa ser majoritário. A revolução sexual, por exemplo, não significou mais que desejos torturantes para a grande e maioria das pessoas da época, jovens ou velhos. Da mesma forma, foram poucos os que embalados pelas drogas partiram para viagens psicodélicas ou tiveram epifanias coloridas a bordo de um submarino amarelo.

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PARA TODOS OS GOSTOS
1968 juntou sonhos e mudanças. Zuenir Ventura (foto) mostra
que a luta armada foi apenas seu emblema

 

Houve 68 para todos os gostos. “Era o êxtase da história”, definiu o sociólogo francês Edgar Morin. Por todos os cantos, a juventude parecia iniciar uma revolução planetária. Na Europa os estudantes gritavam que a transformação do mundo estava ao alcance das mãos. Da Bolívia até o Sudeste Asiático, o Terceiro Mundo vivia em convulsão. O bloco soviético esmagava primaveras dissidentes. Os Estados Unidos, abalados por assassinatos de grandes figuras públicas e conflitos raciais, chafurdavam numa guerra inglória no Vietnã. “Muitas vezes, porém, momentos de grande relevância cultural só são valorizados em retrospecto”, anotou o historiador inglês Tony Judt no seu monumental “Pós-Guerra – a História da Europa desde 1945”. Judt sustenta que os anos 60 são superestimados. Segundo ele, a geração que viveu aqueles anos tratou de atribuir a seu próprio tempo – e a si mesma – uma transcendental importância. “Nem tudo que parecia relevante deixou sua marca na história”, diz ele. Para Judt, a distorção de perspectiva reside numa peculiaridade da época: o estilo era substituto direto do conteúdo.

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Ao contrário de outros países onde 68 acabou definido por liberdade sexual e rompimento com costumes da geração anterior, no Brasil a marca da geração é a política. E o marxismo, sua religião secular. Jovens como Dilma, Lígia e seus companheiros tiveram a adolescência cortada pelo golpe militar e se encontravam à margem da representação parlamentar. Eles estavam convencidos de que tinham perdido em 1964 porque os trabalhadores não reagiram. A política, então, ganhou as ruas e a luta armada começou a parecer a única saída. Neste sentido, a geração de 68 é quase um acidente demográfico. Quem já havia deixado a faculdade em 1968 ou ingressou nela depois de 1971 dificilmente pegou em armas. Os grupos clandestinos militarizados foram, em sua maioria, formados por gente que tinha no máximo 25 anos em 1968 e 18 anos em 1971, nascidos, portanto, entre 1943 e 1953. A predominância dessa faixa etária pode ser comprovada por uma estatística macabra: a dos mortos e desaparecidos. Um levantamento nos arquivos do Ministério da Justiça mostra que 11 dos 12 mortos nas manifestações de rua de 1968 tinham nascido neste intervalo de dez anos. Na Guerrilha do Araguaia, 70% eram desta geração. Em 1972, 73% (veja quadro).

Dilma jamais deixou de prestar homenagens a essas vítimas da ditadura. Na cerimônia em que o PT a indicou como candidata, em fevereiro, teve o cuidado de carregar a lembrança de “três companheiros que se foram na flor da idade” para a campanha eleitoral: “Beto, você ia adorar estar aqui conosco. Iara, que falta fazem guerreiras como você. Dodora, você está aqui no meu coração”, disse Dilma ao final do discurso. Beto era Carlos Alberto Soares de Freitas, o Breno da VAR, amigo de Dilma desde os tempos da militância estudantil em Belo Horizonte. Preso numa pensão no Rio de Janeiro, em 1971, ele acabou levado para a Casa da Morte. Seu corpo nunca foi encontrado. A segunda citada era Iara Yavelberg, a guerrilheira loira, linda, namorada de Carlos Lamarca, que em plena clandestinidade ainda tinha espírito para levar Dilma para “aparar aquela juba” no Jambert, o cabeleireiro de Ipanema que servia champanhe a suas clientes. Iara foi executada no DOI de Salvador. Por fim, a trágica Dodora. Seu nome era Maria Auxiliadora Lara Barcelos. Brutalmente torturada num quartel da Polícia do Exército, ela foi obrigada a presenciar o massacre de um companheiro, que terminou assassinado a pontapés. Banida, esteve exilada no Chile e depois na Alemanha. Dodora nunca conseguiu se recuperar. Em 1° de junho de 1976 atirou-se debaixo de um trem, na estação Charlottenburg, em Berlim. Eram tempos estranhos.

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