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UMA VIAGEM
Da princesa Isabel (à esq.) a Dilma (à dir.),
as mulheres melhoram a sociedade brasileira

 

A primeira mulher a exercer o mais alto posto de poder no Brasil carregava várias mulheres no nome: Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon. Ou, simplesmente, princesa Isabel. Filha herdeira de dom Pedro II, ela substituía o imperador nos seus longos períodos de viagem pelo Exterior. Mais de um século depois, pôde surgir a segunda: Dilma Rousseff. Entre a princesa e a mulher eleita pelo voto, há uma vitória coletiva a ser contada. Para fazer esta viagem, as brasileiras escreveram uma história de luta que, aos poucos, tornou o Brasil um país melhor. Em 13 de maio de 1888, Isabel foi a soberana humanista que assinou a Lei Áurea, acabando com a vergonha da escravidão. Agora, Dilma chega à Presidência da República embalada num programa em que os avanços sociais estão entre as principais promessas.

A plebeia Dilma é, de certa forma, fruto da árvore plantada pela nobre Isabel. A Abolição que imortalizou a princesa escancarou as portas do País para os imigrantes europeus, que vieram em levas ocupar, como trabalhadores pagos, espaços deixados no campo pela emancipação dos escravos. Dilma é filha de um imigrante búlgaro, que, décadas depois do fim do Império, enxergou no Brasil uma terra de oportunidades. Tal qual a atual soberana, a princesa do século XIX tinha sangue europeu – uma miscigenação de etnias brancas do Velho Continente. Nas veias da presidente eleita corre também sangue brasileiro, herdado da mãe mineira. Quando moças, ambas tiveram o melhor que a educação de suas épocas e seus “reinos” poderia oferecer. Isabel, criada em palácios, não foi à escola – os mestres iam a ela e levavam-lhe uma formação humanista, sintonizada com a realidade europeia, onde o mundo fervilhava em discussões que não chegavam ao arcaico Brasil Império. Os Rousseff, por sua vez, encaminharam seus filhos aos melhores colégios de Belo Horizonte, os encheram de livros e os aproximaram das artes e das pessoas que respiravam os ventos revolucionários que a juventude europeia e americana fazia soprar nos anos 1960. Ambas são poliglotas e, curiosa semelhança, são filhas de um Pedro. A vocação abolicionista de Isabel ajudou a encurtar o reinado do pai, dom Pedro II, mas esse talvez seja o menor dos seus efeitos transformadores para o Brasil. A eleição de Dilma não vai gerar mudanças no sistema político vigente, mas espera-se dela a consolidação da abolição da pobreza no País como a base para um longo período de avanços.

Dilma, como presidente, passará a despontar como uma das mulheres mais poderosas do mundo. O seu Brasil é uma potência global, não o gigante periférico que Isabel governou nas ausências do imperador. Mais desenvolvido, menos desigual, mas ainda não totalmente justo com a condição feminina. A princesa foi uma reluzente exceção, de caráter hereditário, ao fazer sua voz ser ouvida num universo esmagadoramente masculino. Dilma foi consagrada nas urnas por homens e mulheres. Se não pode mais ser considerada exceção, também não é regra, principalmente na política. São do sexo feminino 51,8% dos eleitores brasileiros, mas elas não têm, como nunca tiveram, proporcional representação. Na atual legislatura, as mulheres ocupam menos de 10% das cadeiras no Congresso. Nem mesmo uma lei que cria cotas de 30% por partido para as candidatas é cumprida. Nesta eleição, apenas cerca de 20% dos concorrentes eram mulheres. Aí, sim, a importante exceção era a disputa presidencial: entre os três mais votados no primeiro turno, além de Dilma, estava Marina Silva, do PV. Já não é uma única andorinha a tentar fazer um verão que custa a chegar para elas.

As mulheres brigaram muito pelo direito de votar e serem votadas. Berta Lutz, bióloga paulista que havia estudado na Sorbonne, em Paris, fundou em 1922 a Federação Brasileira para o Progresso Feminino, que deu origem ao movimento sufragista feminino no Brasil. As primeiras brasileiras a obterem títulos de eleitor, no entanto, foram duas professoras potiguares, em 1927: Celina Guimarães Viana e Júlia Alves Barbosa comandavam a luta pelo direito de voto das mulheres no Rio Grande do Norte. Um ano antes de o Brasil se convencer da justiça da mudança, Celina e Júlia conseguiram aprovar uma lei estadual nesse sentido e requereram seus títulos. No ano seguinte, houve outro marco histórico: Alzira Soriano se tornava a primeira prefeita eleita do Brasil, em Lajes, também no avançado Rio Grande do Norte de então – foi, porém, cassada por Getúlio Vargas logo após assumir. Depois das vitórias das precursoras, o avanço das mulheres na área política ocorreu de forma lenta. Foram necessários 58 anos para que o Brasil tivesse uma governadora: Iolanda Lima Fleming, que assumiu o governo do Acre em 15 de maio de 1986.

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Antes do direito de voto, a proximidade das mulheres com o poder no Brasil era fortuita. Na história, saltam os nomes de três poderosas de fama: a marquesa de Santos, Chica da Silva e Anita Garibaldi. Mas o poder de todas elas derivava do fato de terem se tornado mulheres ou amantes de homens ricos e influentes. Domitila de Castro (1797-1867), a marquesa de Santos, foi amante de dom Pedro I. Poucas pessoas sem mandato tiveram tanta influência política quanto ela em sua época. A segunda famosa, Chica da Silva, uma ex-escrava, cresceu à margem de leis protetoras. Seu nome era Francisca da Silva de Oliveira (1732-1796). Ela conseguiu ser alforriada e, muito rica, dedicou-se a furar o bloqueio em instituições exclusivas de brancos. Por fim, Anita Garibaldi (1821-1849), que entrou para a história acompanhando o libertário Giuseppe Garibaldi nas lutas republicanas do Sul do Brasil.

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POLÍTICA
Carlota Pereira foi a primeira deputada eleita para a Assembleia Constituinte, em 1933

 

Mulheres inteligentes, mulheres talentosas, mulheres bonitas. Seja a designação que for, há, cravadas na memória popular, representantes de todas as áreas responsáveis por conquistas que permitiram a ascensão do poder feminino. Exemplo disso pode ser comprovado pelo papel das mulheres no desenvolvimento cultural do País em qualquer tempo. A princesa Isabel, por exemplo, teve contemporâneas de alta estirpe, como a compositora e pianista Francisca Edwiges Neves Gonzaga, mais conhecida como Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Filha de uma mulata com um militar, a artista também lutou em defesa da abolição. Chiquinha enfrentou muitos preconceitos tanto na vida pessoal quanto na artística. No primeiro caso, por ter ousado separar-se de dois maridos e, aos 52 anos, iniciar uma relação amorosa com um jovem de 16 anos. Na arte, escandalizou ao botar seu piano a serviço da polca e de outros ritmos menos nobres, revolucionando a identidade musical do País. Chiquinha era amiga de Nair de Teffé von Hoonholtz (1886-1981), a primeira caricaturista do mundo. Casada com o presidente da República Hermes da Fonseca, Nair abriu o Palácio do Catete, no Rio, para saraus ao som de maxixes, tangos, lundus, quadrilhas, mazurcas, choros. A primeira-dama provocou indignação da elite, mas agradou ao povo.
As mudanças de costumes são as que provocam mais resistência em qualquer sociedade, e por aqui não foi diferente. Para ser sacudido, o Brasil precisou de personagens polêmicos como a dançarina Luz del Fuego (1917-1967), nome artístico de Dora Vivacqua. Ela trouxe da Europa, onde estudou, a filosofia de vida natural e vegetariana, sem drogas e bebidas alcoólicas. Queria popularizar o naturismo, mas o que mais chamava a atenção eram os shows que fazia seminua e enrolada em cobras jiboias. A dançarina acabou tachada de louca e internada em hospícios para tratamentos com choques elétricos. A atriz Leila Diniz (1945-1972) foi outro ícone no avanço de costumes para a mulher brasileira. Era irreverente, inteligente e provocadora, sem nenhum apego a tradições. Ao morrer de acidente aéreo com apenas 27 anos, Leila já tinha conquistado o País, debochando do conservadorismo em pleno regime militar.

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A DAMA DO PIANO E DO CHORO
A compositora Chiquinha Gonzaga escandalizou a sociedade brasileira

 

Também não faltam na trajetória do feminismo no Brasil histórias de obstinação como a da psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), que passou a vida trabalhando para acabar com os tratamentos agressivos e desumanos com que a medicina tratava doentes psiquiátricos. Chamada de comunista, chegou a ser presa em 1936. Viveu na clandestinidade, mas nunca parou de contribuir para aprimorar o País. Muitos dos direitos que as mulheres têm hoje, em especial no campo de trabalho, resultam das lutas dessas várias gerações de feministas. Cada uma por seu lado permitiu que a sociedade se aprimorasse. Ainda há muito que caminhar nessa estrada, mas a certeza de que é possível construir um país com direitos abrangentes para gêneros e classes diferentes é maior agora. O motivo é bastante simples: brasileiros e brasileiras elegeram uma mulher presidente. E isso não foi um episódio isolado.

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