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"Se eu sair, eu vou te pre­judicar? Então, eu saio. Não aguento mais”, anun­ciou a ministra da Casa Civil, Erenice Guerra, em conversa telefônica com a candidata do PT ao Planalto, Dilma Rousseff. Horas depois, ainda na manhã da quinta-feira 16, Erenice entregava sua carta de exoneração ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Era o desfecho de um enredo repleto de contradições que vinha colocando um dos cargos mais importantes da República no centro de uma crise política. Alvo de uma enxurrada de denúncias, Erenice não resistiu.

A demissão da ministra foi uma solução combinada com Lula. O presidente vinha monitorando de perto o caso desde a primeira denúncia, em que o filho de Erenice, Israel Guerra, foi acusado de prestar consultoria para uma empresa, a Master Top Linhas Aéreas (MTA), vencedora de uma concorrência milionária nos Correios. Num encontro na noite do domingo 12 com Erenice no Palácio da Alvorada, Lula recomendou que as respostas da ministra tinham de ser “rápidas e esclarecedoras” e que ela teria oportunidade de se defender. “Temos que agir com rapidez. Agora, vá para casa e tome um vinho. Meu filho também foi alvo de uma campanha sórdida”, solidarizou-se Lula no primeiro momento. Na segunda-feira 13, Erenice começou a cumprir as orientações sobre a defesa que o presidente havia determinado. Pela manhã, entregou à Comissão de Ética Pública da Presidência pedido para ser investigada. Depois, determinou a abertura de seus sigilos bancário, telefônico e fiscal, assim como os de seu filho, e anunciou a demissão do assessor jurídico da Casa Civil, Vinícius Castro. A esta altura, a ministra já desconfiava dos movimentos de Vinícius, sócio de seu filho na Capital Assessoria e Consultoria Empresarial. A intuição acabaria transformando-se em certeza de que ele fazia tráfico de influência, como Erenice admitiu mais tarde, em entrevista exclusiva à ISTOÉ.

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DEPOIS DA RENÚNCIA
A ex-ministra Erenice, com o filho Israel, dá
sua versão para o caso

Na terça-feira 14, o presidente percebeu que a crise da Casa Civil estava fugindo do controle, com força para minar os índices de intenção de voto de Dilma. Lula pegou de surpresa a cúpula do PT ao convocar uma reunião ampliada no Palácio do Planalto com a presença de dez ministros, entre eles Guido Mantega (Fazenda), Luiz Paulo Barreto (Justiça) e Jorge Hage (CGU). “O quadro se agravou, pois esse encontro não estava no script”, disse à ISTOÉ um dos integrantes do comando da campanha petista. Além de orientar que integrantes do governo e do PT fossem a público defender a então ministra da Casa Civil, o presidente determinou à Polícia Federal que investigasse Israel. Pediu também que Mantega anunciasse medidas na área da Receita Federal, para evitar novos casos de quebra de sigilo fiscal. O governo movia-se para dar uma resposta incisiva às denúncias que vinham sendo usadas pelos opositores na campanha eleitoral. “O presidente não quer que um ministro fique sangrando sem parar em praça pública. O momento eleitoral exige agilidade”, antecipava um auxiliar de Lula um dia antes da demissão da ministra.

Embora Erenice já emitisse sinais de que deixaria o cargo na noite da quarta-feira 15, a gota d’água foi uma segunda denúncia, cheia de contradições como a primeira, mas que recolocava Israel Guerra como um intermediador de facilidades no governo. Desta vez, a envolvida foi uma empresa paulista, a EDRB do Brasil Ltda., interessada em instalar uma central de energia solar no Nordeste. Por intermédio de Israel, a EDRB esperava levantar um empréstimo no BNDES de R$ 9 bilhões. Em entrevista, o consultor da EDBR, Rubnei Quícoli, disse ter provas do recebimento de uma proposta da Capital Assessoria, para obtenção do financiamento, em troca de uma gigantesca comissão de R$ 450 milhões. “É um festival de mentiras. Estou sendo alvo de uma série de calúnias e vou provar minha inocência”, desabafou Israel com os amigos. Entre seus familiares, o filho da ministra chegou a chorar. “Estou desorientado. Não sei o que vou fazer de minha vida. Como vou ter cara para aparecer na faculdade?”, desabafou Israel, que estuda direito numa universidade de Brasília.

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RECEITA SEGURA
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, foi encarregado
de anunciar um pacote de medidas para evitar novos casos de quebra de sigilo

Além de Israel, a onda de denúncias passava a envolver também o marido, os irmãos e uma irmã da então ministra da Casa Civil. A partir daí, Erenice desabou emocionalmente e na manhã da quinta-feira 16 decidiu, junto com Lula e Dilma, deixar o governo. Lula demonstrou alívio com o desfecho. “Quando a gente está na máquina pública, não tem o direito de errar”, comentou o presidente. “A Erenice tomou a melhor atitude. Foi importante para assegurar o bom andamento das investigações”, endossou Dilma no fim da tarde, no Rio de Janeiro. Logo após a exoneração, Lula decidiu que o então secretário-executivo, Carlos Eduardo Esteves, assumiria interinamente o ministério. O titular da pasta, no entanto, será anunciado nesta semana. Entre os cotados está o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, cuja indicação tem o apoio e simpatia de Dilma.

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TIROTEIO
Lula diz que DEM deve ser “extirpado”. FHC chama o presidente
de “chefe de facção”. Estava aberta uma nova temporada de vale-tudo na campanha

As acusações que pesaram sobre Erenice Guerra são, de fato, muito graves, a ponto de o caso ganhar dimensão internacional. O “Wall Street Journal” deu destaque ao tráfico de influência na Casa Civil e à demissão de Erenice. No blog da revista britânica “The Economist”, o escândalo foi considerado uma “possível tormenta” para a eleição presidencial. As denúncias também repercutiram no jornal francês “Le Figaro” e no diário “El País”, da Espanha. Mas não há como negar que se trata de um episódio recheado de contradições e inconsistências. Algumas histórias simplesmente não fecham. Embora o governo admita que Israel recebeu uma comissão de R$ 120 mil, é estranho, por exemplo, que um lobista, no caso Fábio Baracat, da MTA, faça uma denúncia sobre uma operação da qual ele mesmo participou e obteve êxito. Não por acaso, Baracat desmentiu a denúncia horas depois da publicação. A MTA também refutou qualquer relação com o filho de Erenice. No caso envolvendo a EDRB do Brasil, há que se destacar a ficha criminal do acusador, Rubnei Quícoli, consultor da empresa, que diz ter feito os contatos com a Casa Civil e com a Capital, a consultoria de Israel Guerra. Quícoli disse que parte da gorda comissão cobrada iria abastecer o caixa da campanha do PT, mas sua palavra não é digna de crédito. Ele é alvo de várias acusações na Justiça, entre as quais, crime contra o patrimônio. “Não admitimos que ninguém, e principalmente um cidadão com essa folha corrida, venha fazer a tentativa de forjar a participação da campanha e do PT neste episódio”, esbravejou o presidente do PT, José Eduardo Dutra. Não faz sentido também o valor do empréstimo que teria sido pleiteado ao BNDES. Seriam R$ 9 bilhões, quantia equivalente ao custo da duplicação do Canal do Panamá, um dos empreendimentos mais caros do mundo. Segundo nota do BNDES, o valor do pedido foi de R$ 2,5 bilhões, mas o empréstimo foi negado porque era incompatível com o porte da EDRB.

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SEM RUMO
“Estou desorientado. Não sei o que
vou fazer de minha vida”, desabafa Israel Guerra
 

Inconsistências à parte, Erenice perdeu o cargo de ministra da Casa Civil no meio do intenso tiroteio de uma das campanhas eleitorais mais tensas desde 1989. Exceção no início da atual campanha sucessória, o vale-tudo tornou-se regra nos últimos dias. Ao longo da semana, na esteira das declarações do presidente Lula de que o partido oposicionista DEM deveria ser extirpado da política, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso chamou o sucessor petista de “chefe de facção”, comparando-o ao ditador Benito Mussolini (1883-1945), ícone do fascismo. “Na medida em que um presidente da República quer eliminar um competidor, ele quer o poder total. Isso é abuso do poder político”, disse FHC. O ex-senador e cacique do DEM, Jorge Bornhausen, foi mais além, num comício em Santa Catarina: “Aconselho o presidente Lula a não faltar com a verdade, a não inaugurar obras inacabadas e a não ingerir bebida alcoólica antes dos comícios”, ironizou Bornhausen. A campanha do PSDB manteve o tom beligerante adotado há três semanas, apesar de as últimas pesquisas continuarem a apontar o amplo favoritismo de Dilma, que poderá liquidar a eleição no dia 3 de outubro. Na quinta-feira 16, o presidente tucano, Sérgio Guerra, apontou a campanha adversária como o “maior estelionato da vida política brasileira”. Na televisão, o programa de José Serra não perdeu a oportunidade de explorar o caso Erenice. “Entra dia, sai dia, o PT se enrola em mais escândalos. Hoje, mais um caso grave. E Dilma e Erenice estão juntas desde 2003”, disse o locutor tucano. Em caminhada em Campinas, Serra ainda acusou o governo de tentar atrapalhar as investigações. “Eles estavam tentando jogar areia nos olhos com essa história”, atacou.

O chamado “fogo amigo” também esteve presente durante o desenrolar dos fatos que levaram à demissão da ex-ministra da Casa Civil. A própria Erenice, em entrevista exclusiva à ISTOÉ, admite que as disputas por cargos num futuro governo Dilma já tomaram conta dos bastidores de Brasília. Reconheceu que a crise foi alimentada por aliados que cobiçam espaço na administração federal. Sem se importar com o efeito de seus comentários, um ministro palaciano criticou o tom da primeira nota emitida por Erenice, na segunda-feira 13, em que chama José Serra de “candidato aético e já derrotado”. Segundo ele, a nota foi desastrosa e poderia prejudicar a campanha de Dilma. “Como alguém pode achar ruim eu atacar o adversário numa nota?”, indagou a ex-ministra em conversa com pessoas próximas no auge de sua fritura. Já era tarde. Sua saída de cena estava traçada. Sem dúvida, com Erenice fora da Casa Civil, está aberto o caminho para as investigações da PF e do próprio governo. É de se lamentar, porém, que a temporada de denúncias, fundamentadas ou não, só venha a público por motivo eleitoreiro. Se os tucanos estivessem disparados na frente das pesquisas de opinião eles teriam mirado Erenice? E ela teria sido abatida?