Uma espécie de auto sacramental se repetia a cada dia 18 de julho na Fazenda La Maestranza, na província espanhola de Toledo. Compelidos pelos proprietários, os trabalhadores da fazenda interpretavam na cerimônia o papel dos lavradores que haviam matado a tiros o primogênito da família, quando estourou a Guerra Civil (1936-1939). Duas décadas depois do banho de sangue, os preparativos para a encenação são o ponto de partida do consagrado Jorge Semprún no romance Vinte anos e um dia (Companhia das Letras, 266 págs., R$ 42). Para assistir ao ritual, entre os hóspedes da bela viúva estão um historiador americano de fina estampa e um delegado da Brigada Social, obcecado em identificar e perseguir “subversivos”. Romance intenso, permeado por erotismo e por relacionamentos pouco usuais, Vinte anos e um dia reúne personagens díspares, cujo destino se entrelaça com a história da própria Espanha, subjugada então pelas rédeas curtas do general Francisco Franco, o Generalíssimo.

Na obra, Semprún relembra os comunistas que combateram o regime e, mais tarde, acabaram expulsos do partido, por divergirem do stalinismo. Nesse grupo está o próprio escritor, que usou o pseudônimo de Federico Sánchez para coordenar por longo tempo o combate a Franco. Até no título há referência ao comunismo – 20 anos e um dia era a pena habitual dada aos dirigentes que caíam nas garras da polícia franquista. Nascido em Madri, Semprún vive desde o começo da adolescência em Paris, exceto dois períodos. O mais recente, quando foi ministro de Cultura do governo Felipe Gonzáles, entre 1988 e 1991. Na juventude, devido à sua atuação na Resistência Francesa, ficou dos 19 aos 21 anos no campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha.

As experiências amargas parecem ter aguçado em Semprún a capacidade de redimensionar a condição humana, o que se reflete tanto nos seus livros quanto nos roteiros que o celebrizaram no cinema. Vinte anos e um dia, que acaba de ser lançado no Brasil, foi premiado pela Fundação José Manuel Lara Hernández como o melhor livro de ficção publicado na Espanha em 2003. Ao contrário dos outros romances de Semprún, que tiveram original em francês, o livro foi escrito em espanhol. A partir da contemplação de um quadro da italiana Artemisia Gentileschi, sobre a degolação de Holofernes por Judite, Semprún construiu uma trama repleta de paixão e dor, que atravessa gerações. Só não consegue mesmo se livrar de Federico Sánchez, que já foi tema de uma autobiografia e desta feita aparece como narrador. É ele quem explica o direito de pernada, aquele que dava ao senhor o privilégio de usufruir a primeira noite de núpcias das donzelas que viviam em seus domínios. Uma versão do hábito medieval era praticada com assiduidade na Espanha do século XX, como descreve em detalhes Vinte anos e um dia.