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TRANSIÇÃO
Cozinhar já foi tarefa de escravos. Depois, obrigação das donas de casa
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Até 20 anos atrás, cozinhar era uma necessidade doméstica, ou um meio de ganhar a vida para quem não tinha outra opção. Hoje, é um ritual sofisticado. Ao constatar uma mudança de comportamento tão significativa na sociedade brasileira, a historiadora da alimentação Débora Santos de Souza Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP), decidiu ir a fundo no tema. “Eu queria entender como um hábito que era motivo de vergonha entre as mulheres se tornou a moda do momento”, conta. Para entender essa transformação, ela estudou o ensinamento culinário ao longo da história brasileira. No início, eram as escravas que detinham o conhecimento. Não existia sequer cozinha dentro das casas, mas espaços para o preparo dos alimentos do lado de fora. Com a chegada dos imigrantes europeus e japoneses e a abolição da escravatura no século XIX, as negras foram substituídas por empregadas domésticas nas casas mais abastadas. E as mulheres da elite continuaram longe da pia. “Elegante era não sujar as mãos na cozinha”, ressalta Débora.

Nesse período, a classe média que não podia se dar ao luxo de ter uma empregada passa a buscar conhecimento culinário. Surgem, então, os livros de receitas. De acordo com a historiadora da alimentação Cristiana Couto, os primeiros livros vieram com a família real, em 1808, recheados de receitas da corte europeia – nada acessíveis ao brasileiro médio. Outro fator de impacto na culinária brasileira foi a chegada da indústria alimentícia e dos fabricantes de eletrodomésticos. As mulheres de classe média dos anos 50 praticamente aprenderam a cozinhar lendo as receitas que vinham nos rótulos dos produtos. A inversão nos costumes entre caçarolas começa a acontecer nos anos 90. E essa grande virada se deve, principalmente, à chegada dos produtos importados, até então raríssimos em solo nacional. Paralelamente, surgem os cursos de gastronomia no ensino superior. Cozinhar por profissão deixa de ser tarefa apenas das classes menos favorecidas para seduzir filhos de endinheirados ávidos por mergulhar em experiências gastronômicas. A mudança alcançou até os programas de televisão. Se antes eram estrelados por rechonchudas e simpáticas culinaristas, donas de casa que iam para a tevê contar seus segredos, agora são comandados por charmosos chefs celebridades.

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CHIQUE
A partir dos anos 90, os abastados foram parar na cozinha

As diferenças de gostos e do jeito de preparar os alimentos marcam também os hábitos das classes sociais. “As mudanças são impulsionadas pelas classes A e B”, acredita a pesquisadora da USP. Hoje, enquanto os mais pobres podem se dar ao luxo de comer fora e comprar congelados, os estratos mais altos descobrem o prazer de pilotar seu próprio fogão – numa cozinha chiquérrima, claro. Cozinhar para amigos, por exemplo, é símbolo de status. “Outros modismos são a comida orgânica e a ética, aquela considerada sustentável”, destaca Débora. Ao que tudo indica, são essas as tendências que vão ditar os lançamentos da indústria alimentícia nos próximos 20 anos. E também o jeitinho brasileiro de cozinhar.