No Dia das Crianças de um longínquo 1923 nascia, em Minas Gerais, um Fernando muito sabido, disposto a subverter a ordem natural das coisas e nunca deixar de ser o garoto feliz e arteiro que ele tão bem descreveu, 40 anos mais tarde, na crônica Menino, do livro A mulher do vizinho. Na última terça-feira, novamente Dia das Crianças, o escritor Fernando Sabino era sepultado no Rio de Janeiro exatamente quando completaria 81 anos de idade. De sua própria lavra, o epitáfio ratifica a intenção de uma vida inteira: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e virou menino.” Segundo amigos, foi com esse espírito de quem mantém a pureza nas adversidades que ele recebeu o diagnóstico de câncer no esôfago, há dois anos. Obediente, fez o tratamento e se supôs curado. Há dois meses, entretanto, foi detectada uma metástase no estômago. Enquanto pôde, continuou a desfrutar o “pitoresco e o irrisório do cotidiano” – como descreveu o ofício de cronista –, passeando por Ipanema, na zona sul carioca, onde morava e, segundo consta, era um “menino” bastante feliz.

“Costumava encontrá-lo nas caminhadas na orla ou pelas ruas do bairro, sempre alegre”, atesta o escritor Silviano Santiago, para quem Sabino era um talento “abençoado pelos deuses”. O editor e amigo Paulo Rocco também não tem recordação de abatimento. “Nos falávamos sempre por telefone e a doença nunca era assunto. Era o mesmo Fernando de sempre.” Isso equivale a dizer que a literatura, foco central de sua vida, estava na pauta. Tudo começou aos 13 anos, ao publicar um conto na extinta revista Argus, em Belo Horizonte. De cara, conheceu uma das agruras de ser jornalista e escritor, as carreiras que abraçaria mais tarde, quando um erro gráfico o transformou em Fernando Tavares “Sobrinho”. De sua extensa obra destaca-se O encontro marcado, considerado o retrato de uma geração e que remonta a amizade eterna de quatro mineiros de alta estirpe literária: Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, já falecidos, além dele próprio. Quando alguém o estimulava a sair de casa e a procurar os amigos, dizia que “eles estão no São João Batista (cemitério), que fecha às 18h”.

Paixões – Três de seus 54 livros viraram filmes: O homem nu, A faca de dois gumes e O grande mentecapto – este último, um dos brilhantes momentos da literatura brasileira. A maior decepção veio em 1991, após publicar Zélia, uma paixão, biografia romanceada e autorizada da ministra do malfadado governo Collor. Sabino foi acusado de oportunista e, ferido, praticamente parou de dar entrevistas após o episódio. Outras paixões suscitaram melhores registros, como a natação – quebrou recordes em 1939 – e a música. Depois de tanto insistir em batucar nas teclas de um piano velho, a família resolveu botar o menino nas aulas de dona Abília. “Aprendi a tocar Linda borboleta com as duas mãos e mais de uma vez beijei a netinha dela num canto escuro da varanda”, recordou-se em O piano no porão, do livro No fim dá certo. Acabou bateirista do Ramblers traditional jazz band, o grupo que embalou canções em sua despedida e, com licença poética, deu um clima de travessura de meninos ao sepultamento.