O setor de produção de vinhos do País deve muito de seu aprimoramento ao chileno Mario Geisse. Desde 1975, quando veio dirigir a filial brasileira da Moët & Chandon, esse engenheiro agrônomo especializado em enologia, com seu faro impressionante para descobrir pedaços de terra ideais para plantar uva, contribuiu para que o Brasil fosse reconhecido como um competente produtor, sobretudo, de espumantes. Em seu país, ganhou mais de 30 prêmios internacionais. Um de seus tintos, o Bisquertt, foi eleito em 2002 o melhor merlot do mundo pela International Wine Spirit Competition, na Inglaterra. O mesmo concurso elegeu no ano passado outro de seus “filhos”, o Los Lingues Gran Reserva 2001, o melhor carmenère do planeta. Este tinto é produzido pela Casa Silva junto com preciosidades como os tintos Quinta Generatión e Altura. No ano passado, os Silva resolveram comprar o passe de Geisse com exclusividade, depois de vê-lo como autor de metade dos vinhos de algumas listas dos mais premiados do Chile, cada um de um produtor diferente. Hoje, além da consultoria, Geisse produz vinhos na Cave de Amadeu, em Bento Gonçalves (RS). Seu espumante brut, o Cave de Amadeu, é considerado o melhor do País. Nesta entrevista, ele analisa o mercado latino-americano e revela detalhes curiosos sobre o mundo sedutor dos vinhos.

ISTOÉ – Por que o sr. afirma que
o Brasil deveria lutar para se firmar como o país do espumante?
Mario Geisse
– Porque essa é a vocação natural para o clima e o solo encontrados no País, aquilo que chamamos de
terroir, sobretudo na serra gaúcha. No Brasil, as uvas pinot noir e chardonnay, utilizadas nos espumantes, amadurecem com alto grau de acidez, pouco açúcar e ótimos aromas, características ideais para a bebida. Na Argentina, por exemplo, essas uvas são colhidas antes da maturidade total, senão a fruta perde acidez e concentra açúcar. Mesmo o Chile, competitivo nos tintos, ainda não encontrou terras boas para espumante. No Brasil, podemos nos dar ao luxo de colher no ponto certo e com as características preservadas.

ISTOÉ – E são baratos…
Geisse
– Tão baratos que muitos brasileiros olham o produto com preconceito e pagam bem mais caro por champanhe francês de qualidade semelhante ou inferior. O Cave de Amadeu Brut, por exemplo, sai por R$ 40, no máximo. Exportado para a Europa, é o único vinho brasileiro vendido na loja El Mundo del Vino, em Santiago, no Chile, do master sommelier Héctor Vergara, considerada a segunda do mundo, atrás de uma parisiense. Para comprar um francês com a mesma qualidade, seria necessário pelo menos o triplo. Outras empresas brasileiras oferecem bons produtos entre R$ 25 e R$ 40. Excluindo o topo da faixa dos franceses, o Brasil é realmente competitivo no restante do mercado.

ISTOÉ – O brasileiros bebem pouquíssimo espumante, não é mesmo?
Geisse
– Espantosamente pouco, apenas 25 mililitros por pessoa ao ano. Meu Deus, com todo esse potencial de produção… Os brasileiros precisam descobrir que espumante e champanhe são os mais versáteis dos vinhos. Acompanham bem muito mais coisas do que se imagina. São ótimos com peixes, comida japonesa, geléia, carnes brancas, embutidos leves, defumados e até com churrasco, porque lava a boca, produz contraste pela acidez e não pesa. Eu e minha namorada, também enóloga, amamos todos os vinhos, mas dificilmente fugimos dos espumantes. Há uma máxima no nosso meio que diz: na dúvida, mergulhe no espumante.

ISTOÉ – O sr. é conhecido no Brasil pelos espumantes e, no Chile, pelos tintos, particularmente o carmenère…
Geisse
– A uva carmenère tem uma história bonita. No início do século, foi tirada do mapa na Europa pela praga filoxera. As mudas sobreviveram no Chile porque somos um dos países com maior proteção natural do mundo. Temos a Cordilheira dos Andes de um lado, o oceano Pacífico do outro, o Deserto de Atacama ao norte e os glaciais ao sul. Do início do século XX até a década de 70, essa uva foi confundida e plantada junto com a merlot. A partir da identificação, o Chile ficou marcado por esta uva, hoje cultivada em poucos lugares. É uma uva difícil, exigente, que pede um solo muito seco, mas gera vinhos elegantes, com taninos macios. É mais uma de minhas paixões. Costumo compará-la à costela de boi. É uma carne difícil de ser preparada, cortada, conquistada. Mas, quando isso tudo ocorre, gera o melhor churrasco. O raciocínio vale totalmente para a carmenère.

ISTOÉ – Essa uva pode ser plantada no Brasil?
Geisse
– Definitivamente não. O solo do Brasil tem água demais para essa uva. A carmenère, quando absorve muita água, gera vinhos muito vegetais, com gosto de folhas, verduras e legumes. Realmente, não fica bom. A uva que melhor se adaptou ao Brasil é, sem dúvida, a merlot. Eu e meus concorrentes produzimos alguns 100% merlot muito bons em Bento Gonçalves.

ISTOÉ – Os enólogos, como os chefs, viraram estrelas. Mas o sr., um dos maiores do mundo, não cultiva essa pompa…
Geisse

– Vinho é prazer. Deve unir, não separar. Para isso, a gente precisa de taças, garrafas, eventualmente um decantador – e muito pouca coisa a mais. Tento ajudar a destruir essa imagem elitista e às vezes deslumbrada que é cultivada por muitos no setor. E, depois, quero sair nas ruas sem correr o risco de ser sequestrado.