Após dois anos de existência, o legado que a Operação Lava Jato pretende deixar ao povo brasileiro vai além das prisões de poderosos empreiteiros e figuras conhecidas do cenário político. “Queremos, um País com menos corrupção”, sublinha o procurador da República Deltan Dallagnol, que coordena os trabalhos da força-tarefa, em entrevista concedida à ISTOÉ. A primeira fase do conjunto que forma esse espólio passa pela aprovação de 10 Medidas contra corrupção. O cerne que se almeja alcançar com elas é tornar a modalidade um crime de alto risco e baixo benefício. As propostas de alteração na lei ganharam a adesão de dois milhões de assinaturas em apenas dez meses. “É preciso, agora, que esse clima das ruas, de um desejo genuíno de um País mais justo, contagie o Congresso Nacional, que vai apreciar a iniciativa dos procuradores da Lava Jato”, afirma Dallagnol.

ISTOÉ – De que forma a Lava Jato influenciou a elaboração das 10 Medidas contra a corrupção?

Dallagnol – As 10 medidas surgiram quando percebemos que parte da sociedade coloca sobre os ombros da Lava Jato uma expectativa de transformação do Brasil que o caso sozinho não produz. Por ter se revelado uma ilha de justiça num mar de impunidade, a Lava Jato pode levar à punição dos criminosos e à recuperação de boa parte do dinheiro. Contudo, se não mudarmos as condições que favorecem a corrupção no Brasil, ela continuará a brotar. Na Lava Jato, tratamos de um tumor, mas o sistema é cancerígeno. Precisamos tratar o sistema, e nisso surgiu a iniciativa das 10 medidas. Além disso, a Lava Jato renova esperanças e quebra o cinismo, a descrença no Brasil e no funcionamento das Instituições. Ela foi o ponto de apoio sobre o qual foi colocada a alavanca das 10 Medidas, a qual pode nos ajudar a mover esse mundo de corrupção.

ISTOÉ – Se aprovadas, essas medidas poderão ser aplicadas de imediato, aos réus da Lava Jato?

Dallagnol – O foco das medidas não é tratar dos fatos da Lava Jato, mas sim evitar que novos escândalos de corrupção se repitam no futuro. Hoje colhemos os frutos de nossa inércia no passado em relação à corrupção. Precisamos plantar hoje as 10 medidas, para colhermos amanhã um País com menos corrupção e impunidade. Estudos mostram que quanto menor for a corrupção, melhor é a renda, a saúde, a educação, a efetividade do governo e a competitividade das empresas no cenário global. As medidas se aplicarão, em geral, apenas para novos crimes praticados após a sua eventual aprovação. Isso é uma regra absoluta quanto a novos crimes e aumento de penas. Contudo, algumas mudanças de procedimentos, e não punições, como a agilização dos recursos, serão aplicadas a casos em andamento, trazendo uma eficiência maior para a Justiça.

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ISTOÉ – O ministro Alexandre de Moraes, da Justiça, defende que corruptos não tenham direito a progressão de pena.

Dallagnol – São duas estratégias diferentes com o mesmo objetivo de tornar o crime de corrupção um crime de alto risco. Prefiro a nossa, mas não retiro o valor de outras. Há três regimes de cumprimento de pena: fechado, semiaberto e aberto. A proposta do ministro Alexandre de Moraes tem por premissa o fato de que um condenado por corrupção pode em geral progredir do regime fechado para outro mais brando após cumprido apenas um sexto da pena. Uma progressão mais severa para casos de corrupção, na linha do que ele propõe, pode ser positiva. Contudo, se não alterarmos as penas atuais da corrupção, o corrupto não chega sequer a se submeter a qualquer dos três regimes, pois na prática a pena é substituída por medidas leves como prestação de serviços comunitários e doação de cestas básicas. Além disso, essa pena branda é perdoada completamente por um indulto natalino após cumprido um quarto da pena. Nossa proposta muda essa realidade, aumentando as penas e convertendo a corrupção que envolve valores maiores em crime hediondo, o que impede o indulto.

ISTOÉ – A delação premiada não vai na contramão dessas medidas, uma vez que, além de reduzir a pena do réu ainda o coloca em liberdade num prazo curto de tempo?

Dallagnol – A colaboração premiada e as 10 Medidas convergem: ambas objetivam maximizar a punição de corruptos e a recuperação do dinheiro desviado. As colaborações de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef são emblemáticas. Se não tivéssemos feito os acordos com eles, teríamos apenas um caso criminal de médio porte envolvendo propinas de cerca de R$ 26 milhões pagas a um diretor da Petrobras em função de um contrato, de uma empresa. As colaborações revelaram mais de R$ 6 bilhões de propinas envolvendo centenas de grandes empresários, diretores da Petrobras, políticos e outros funcionários públicos, em centenas de contratos, de dezenas de empresas. Não teríamos um só real de ressarcimento até hoje, quando mais de R$ 3 bilhões de reais foram recuperados pela Lava Jato para a sociedade. Acordos de colaboração têm efeito multiplicador. Você preferiria ficar com a condenação integral de Paulo Roberto e Youssef ou ter todo o caso que temos hoje? Os acordos de colaboração, que são o motor que move a Lava Jato, só são feitos quando manifestamente favoráveis ao interesse público. Segundo a famosa máxima que guia os acordos, troca-se uma sardinha por um tubarão, ou um peixe por um cardume.

ISTOÉ – O presidente do Senado, Renan Calheiros, mostrou disposição de resgatar o projeto que trata de punição a crimes de abuso de autoridade. Isso pode prejudicar a Lava Jato?

Dallagnol – É esperado que investigados reajam às investigações, inclusive por métodos ilegítimos. Vimos isso várias vezes ao longo do caso. Um dos contra-ataques se materializou pela propositura de um projeto que altera a lei de abuso de autoridade. A proposta cria punições para “abusos” que são descritos de modo vago, permitindo interpretações que enquadrem investigadores que estavam apenas fazendo regularmente o seu trabalho. Para piorar, a acusação criminal do suposto “abuso” poderá ser feita diretamente pelo investigado, como método de intimidação ou vingança contra membros do Judiciário, Ministério Público e Polícia. Não é criada nenhuma punição para abusos por parte de políticos. O momento, conteúdo e urgência do projeto tornam claro que é um cavalo de Troia para obstruir a ação de investigadores, especialmente da Lava Jato. Não é a primeira reação e não será a última. Até agora, a sociedade tem protegido as investigações, mas precisamos continuar atentos.

ISTOÉ – Se o Congresso decidir vetar algumas das 10 propostas, qual o sr. acha que não deve ficar de fora?

Dallagnol – Perguntar isso para mim é como perguntar a um pai qual dos filhos precisa ser salvo, é uma escolha de Sofia (risadas). A corrupção é um fenômeno complexo. Não existe solução simples. Por isso é que precisamos das 10 Medidas, que atacam o problema em diversas frentes: prevenção, punição adequada, fazer a punição sair do papel e recuperar o dinheiro desviado. Para além dessas medidas todas, precisamos ainda de reforma política, assunto sobre o qual temos uma expectativa de que o Congresso possa se debruçar num horizonte razoável de tempo.

ISTOÉ – Há uma proposta que recomenda a criação de medida para confiscar o patrimônio do condenado que corresponda à diferença entre o patrimônio de origem lícita e o patrimônio total. Como o MP fará essa distinção?

Dallagnol – É senso comum que o crime não deve compensar. O problema é que, no mundo real, ele compensa. Isso não só no Brasil. Segundo uma pesquisa de um professor da PUC/PR, Sólon Linhares, no Reino Unido o crime organizado teve um ganho de 15 bilhões de libras, mas apenas 125 milhões foram recuperados. De 903 milhões na Alemanha, 113 foram alcançados. Criminosos que adotam um estilo de vida criminoso, o criminal lifestyle, dificilmente são pegos e, quando são, respondem pela pequena parte dos seus crimes que foi descoberta e comprovada, como aconteceu com Al Capone. Para mudar isso, vários países, como Portugal, Alemanha, Espanha e Itália, criaram um instrumento legal chamado de confisco alargado, que propomos dentre as 10 medidas. A proposta permite o confisco, no caso de condenação por crimes gravíssimos e que geram muito dinheiro, como tráfico de drogas e corrupção, não só dos valores diretamente vinculados aos crimes descobertos, mas de todo o patrimônio sem origem lícita daquela pessoa. É feita toda uma análise de patrimônio e o próprio investigado pode mostrar que o dinheiro tem origem legal. O confisco acontecerá apenas quando não houver indicativo de que o dinheiro tem fonte legítima. E a dúvida, no processo penal, favorece o réu.

ISTOÉ – Na Itália, logo depois da Operação Mãos Limpas, veio uma legislação nova para acobertar os corruptos. O sr. não teme que haja um efeito parecido no Brasil?


Dallagnol – Tememos sim. O número de investigados poderosos cresce a cada dia. Nós não temos poder econômico ou político. A sociedade é nosso único escudo. A Lava Jato simboliza o desejo ardente do coração do brasileiro de dar um basta na corrupção e é a identificação com essa causa que nos protege. Na Itália, a reação veio exatamente dois a três anos após o início da investigação, momento que vivemos hoje. Temos receio de que as pessoas se acostumem com tanta notícia de corrupção, percam a capacidade de se indignar ou se envolver e que o interesse pela causa esfrie. Isso pode trazer dois efeitos negativos. O primeiro é abrir um flanco para ataques contra a Lava Jato e as investigações, com a aprovação de leis que atrapalham o combate à corrupção e objetivam proteger os investigados contra uma ação justa da Justiça. Na Itália, por exemplo, foi aprovada uma lei apelidada de “salva ladrões”, que proibia a prisão preventiva nos casos de corrupção. O segundo é o risco de que a corrupção sistêmica não receba um tratamento adequado. Esse grave problema já foi diagnosticado há mais de dois anos e ainda não foram feitas as reformas necessárias. Se queremos um País com menos corrupção, precisamos aprovar as 10 Medidas e uma boa reforma política.


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